Falha na matriz: quando a periferia bagunça os algoritmos

bruna provazi
Ideia Errada
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9 min readAug 16, 2020

Dos acumuladores de papel higiênico aos boêmios do Leblon. De março até aqui, a humanidade parece já ter dado provas suficientes de que não vai voltar regenerada pós-pandemia. Mas qual será a cara do mundo digital “quando tudo isso passar”? Muito tem se falado sobre o declínio da cultura das celebridades. De outro lado, entramos de vez na Era dos Criadores de Conteúdo. Nesta arena em que o pleno acesso à internet ainda é um privilégio, sequestrar o poder de influenciar parece ter se tornado a maneira de tomar os meios de produção.

A digitalização de todas as esferas da vida neste momento de crise ajudou a escancarar e aprofundar velhas desigualdades. Do ensino à distância ao teletrabalho, famílias inteiras estão travando suas batalhas digitais num país em que 58% das casas não têm computadores e 33% não têm internet. Cerca de 70 milhões de brasileiros estão tendo que se virar com acesso precário ou sem acesso à internet, e 42 milhões são obrigados a “se reinventarem” sem nunca terem sequer acessado à rede. Os dados são do levantamento mais recente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI, 2018).

Não dá pra dimensionar essa crise sem olhar também para a pesquisa “O trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, divulgada semana passada pela Gênero e Número e pela SOF Sempreviva Organização Feminista. Segundo o relatório, 41% das mulheres que seguiram trabalhando durante a pandemia com seus salários mantidos disseram que estão trabalhando mais, pois as tarefas no ambiente doméstico ainda não são divididas de forma igualitária. Outro dado importante é que 50% das brasileiras passaram a cuidar de alguém.

Escrevi anteriormente aqui sobre o caso Gabriela Pugliesi e como, com todo mundo quebrado emocional e/ou financeiramente, pessoas e marcas estão se tornando menos suscetíveis a comprar estilos de vida irreais e incoerentes. Neste post vamos falar um pouco sobre o boom dos criadores de conteúdo periféricos no contexto da pandemia.

Marcelo Marques (Audino Vilão). Foto: Reprodução/Facebook.

“É tudo nosso, o que não for nosso nóis toma”

Com essa brilhante definição, o youtuber Marcelo Marques, mais conhecido como Audino Vilão, resume o pensamento de Karl Marx. Ostentando carisma e um incrível poder de comunicação, Audino “pega a visão” de pensadores clássicos da História e da Filosofia e traduz para a gíria da quebrada. Aos 18 anos, o estudante de História é dono de um canal com mais de 90 mil inscritos no YouTube.

Cria do universo dos games e animes, Marcelo começou produzindo vídeos com títulos intrigantes, como: “League of Legends se baseia na Tele Sena” e “Boku no hero se passa no SENAI”. Há cerca de dois meses apenas, em junho deste ano, ele resolveu mudar de rota e começou a postar conteúdos sobre História e Filosofia.

Um cigarrinho na boca e uma didática de dar inveja à academia. Sem quaisquer cortes ou edições, os vídeos mal iluminados gravados em seu quarto chegam a bater mais de 200 mil visualizações em poucas semanas. Em um dos conteúdos que mais se alastraram, Audino explica como os entregadores de aplicativos poderiam aplicar Karl Marx para tomar os meios de produção. Em outra pérola, ele resume Friedrich Nietzsche ao “verdadeiro roba brisa” do rolê.

Com o sucesso das primeiras produções, o youtuber resolveu lançar uma campanha de financiamento coletivo para dar aquele upgrade no canal e adquirir: “só o básico, um microfone, uma iluminação, uma câmera suave”. Com uma meta inicial de 5 mil, Audino conseguiu arrecadar 17 mil reais, graças a uma rede de 274 apoiadores.

Morador de Paulínia, no interior de São Paulo, e desempregado no início da pandemia, o vilão se diz mega surpreso (e emocionado) com a repercussão. Em um vídeo postado nesta semana em seu Twitter, ele atribui o sucesso ao “erro que o sistema nunca previu”. E ele não está furando essa matriz sozinho…

“Não importa onde você mora, importa como você pensa”

Criado pelos irmãos gêmeos Eduardo e Leonardo Santos, de Campinas, o perfil @veganoperiferico já soma cerca de 320 mil seguidores no Instagram. A proposta é só uma: espalhar a palavra do veganismo de um modo acessível e direto, ou seja, mostrar que é possível ser pobre e vegano. Segundo diz a bio do perfil:

“Acreditamos em uma causa acessível para todos. Não importa onde você mora, importa como você pensa”. — Vegano Periférico

Sem selfies, Reels, TBTs e qualquer publicidade. Seus posts com histórias cotidianas e receitas simples, acrescidos de fotos de comida de verdade em pratos de vidro marrom — essenciais na casa de qualquer brasileiro — chegam a bater 28 mil curtidas. Além de provarem que o veganismo pode ser acessível a todes, os gêmeos atestam que é possível conquistar autoridade de rede com conteúdo relevante e sem precisar apelar para velhas dietas de marketing digital.

Fonte: Reprodução/Instagram.

Assim como Audino, eles também demonstram surpresa com a viralização. Segundo declararam em entrevista à revista inglesa Where the Leaves Fall deste mês:

“Nós não estávamos realmente esperando esse boom no Instagram, nós só fizemos o que acreditávamos de uma maneira muito honesta, próximo da nossa própria realidade, e nós começamos a receber muito feedback positivo das pessoas que nos agradeciam por quebrar os mitos em torno do veganismo”.

Boom mesmo. Entre março e agosto deste ano, seu perfil no Instagram pulou de 280 mil para 320 mil seguidores.

“Segundou: já anotou o que você gastou na semana que passou?”

Você não vai ganhar seu primeiro milhão com a Nath, mas tem grandes chances de conseguir sacar todas as parcelas do auxílio emergencial. Com 21 anos, a youtuber e estudante de Administração de Empresas de Nova Iguaçu Nathalia Rodrigues tem um único foco:

“[Fazer] Todos os meus inscritos saírem do vermelho, utilizando seu dinheiro da melhor forma possível e mantendo a saúde mental e financeira”.

Foto: Divulgação.

Criado em janeiro de 2019, o canal Nath Finanças já soma 173 mil inscritos e mais de 1,7 milhão de visualizações. O primeiro segredo talvez esteja em focar num público-alvo diferente dos canais tradicionais: a população de baixa renda. Conforme a própria descrição do canal, ela fala basicamente com trabalhadores que ganham um salário mínimo, estudantes, desempregados e estagiários. O segundo “truque” talvez seja a própria persona por trás da ring light.

Navegando num disputado mar de canais sobre economia financeira no YouTube, Nathalia faz um contraponto aos criadores mais elitizados, que utilizam fórmulas mágicas e títulos apelativos, e que em nada dialogam com a realidade do brasileiro detentor de três salários mínimos. Segundo Nath afirma em entrevista ao portal Per Raps:

“O tema educação financeira é como política/direito: a mídia,o governo e grandes empresas não acham interessante abordar o tema para periferia. Não é interessante o pobre saber quanto paga de juros no cheque especial. (…) Temos pessoas na internet falando sobre o assunto, porém não temos a devida visibilidade para pessoas que são realmente da periferia e falam dos assuntos. Como meu canal Finanças com a Nath, a intenção é ter a linguagem mais acessível possível, sem jargões acadêmicos.”

De março até agosto de 2020, seu perfil no Instagram praticamente dobrou, passando de 123 mil para 240 mil seguidores.

Porém, como Nath bem sabe, o caminho dos boletos é longo até que as visualizações se convertam em monetização. Sem romantização, ela manda a real pra quem quer atuar nesse ramo.

Se dividindo entre a faculdade, o estágio no Sisu e a produção de conteúdo, a youtuber recebeu seu primeiro pagamento somente agora. O canal foi criado em janeiro de 2019, no entanto, devido a questões burocráticas que ela não tinha conseguido resolver antes, e às normas da plataforma, como as horas de visualização e o valor mínimo para transferência, o dinheiro só caiu de fato em sua conta em junho de 2020.

Todo esse tutorial da monetização está explicadinho em vídeo, tanto em seu YouTube quanto em um rico conteúdo extra, postado no IGTV.

Com o dedo no upload

Estamos, definitivamente, na Era dos Criadores de Conteúdo. E, embora não se fale muito abertamente sobre isso, existe uma enorme guerra silenciosa entre as plataformas por seus soldados. Essa guerra vai desde a incorporação (plágio) pelo Instagram de recursos de outros aplicativos, como o poderoso Tik Tok chinês, até o investimento em formação.

A exemplo disso, no último mês de julho, o YouTube anunciou o projeto Aulão para Criadores, uma série de lives abertas e gratuitas em seu canal oficial, o YouTube Criadores. As aulas abordavam temas como: princípios fundamentais da estratégia de conteúdo, monetização, análise de métricas e técnicas de produção de vídeo, áudio e roteiro.

Mas esse fenômeno dos criadores de conteúdo não é tão novo assim… É um movimento que já vinha acontecendo, e que tem como principal recorte a faixa etária. Segundo explica o especialista em marketing digital e criador de conteúdo Daniel Bryan:

“As redes estão repensando seu modelo de negócio. A partir do momento em que o YouTube começa a remunerar seus criadores, isso muda completamente a perspectiva, e ser produtor de conteúdo digital passa a ser visto como uma profissão, principalmente pela juventude. Neste cenário, os jovens das classes mais baixas passam a enxergar nas redes uma oportunidade de ascensão e reconhecimento social, ou mesmo uma possibilidade de mostrar sua arte e seu trabalho.” — Sigam o Insta dele pra mais dicas: @danielbryan_

Daniel Bryan defende também que os criadores que decolaram neste período de pandemia já estavam prontos, produzindo conteúdo de alta qualidade e dominando as estratégias de comunicação. Neste momento em que grande parte das pessoas está em casa conectada, seus olhos e ouvidos vão se voltar ainda mais para as redes sociais, aumentando o alcance e engajamento de quem já estava com uma série de bons conteúdos na mão e o dedo no upload.

“Não importa onde você mora. Importa como você pensa.” / “Desinformação, arma contra a população.” — @veganoperiferico Foto:Reprodução/Instagram.

O erro que o algoritmo não previu, ou: os verdadeiros “roba brisa”

Certa vez ouvi que o real desejo do público nunca é altruísta, ele sempre é egoísta — dica que levei pra todos os âmbitos da vida, inclusive… Entender quem é o seu público e o que ele deseja “ganhar” assistindo aos seus vídeos ou arrastando seu carrossel pro lado é o primeiro passo pra botar qualquer projeto de pé. Então qual conteúdo a audiência realmente deseja consumir agora? É possível passar uma régua no “espectador médio”, em tempos de segmentação?

São questões complexas demais para serem respondidas num post. Mas parece plausível afirmar que queremos ver gente lidando com boletos como a gente, fazendo a xepa (sem crueldade) no mercadinho do bairro e tirando onda de um livro que talvez jamais vamos ler.

Na Netflix das redes, criamos empatia com determinadas personagens que nos falam/escrevem/performam, e assim vamos acompanhando essa exibição, temporada a temporada. Porque, em resumo, gente de verdade cria conexão. Pouco importa se estão falando de Nietzsche ou de taxa SELIC.

Ganhar dinheiro com a produção de conteúdo vai continuar sendo um sonho inalcançável para a maioria deles e delas, uma vez que não dispõem dos principais meios de produção atuais: TEMPO e TECNOLOGIA. No entanto, sem adentrar nos interesses escusos por trás das empresas que detêm a tecnologia digital, há de fato um território a ser monetizado e, sobretudo, influenciado, pela classe trabalhadora.

O erro que o algoritmo não previu talvez seja a capacidade que essa galera tem de alastrar, com o poder da conexão, um conteúdo que pode fazer pessoas comuns manjarem de juros e de História, fecharem as contas no azul, entrarem na universidade ou consumirem cada vez menos carne. É uma maneira possível de bagunçar as sólidas bases do capital. E é aí que os criadores periféricos encontram sua brecha para produzir a falha na matriz.

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Bruna Provazi é jornalista, mestra em Ciências Humanas e Sociais, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual.

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