Indianare: resistir para existir

bruna provazi
Ideia Errada
Published in
4 min readJul 3, 2020

“Quem hétero? Quem é lésbica? Quem é travesti, quem é transsexual? Quem é homem, quem é mulher? E aí, onde tudo termina?”

Num cemitério, em meio a dezenas de cruzes fincadas no chão de terra batida, a personagem que dá nome ao documentário nos é apresentada. Indianare Siqueira enxuga as lágrimas por trás dos óculos escuros e discursa eloquente e emocionade sobre a morte de uma companheira. A ativista transvestigenere (hoje identificada como não-binárie) vai nos guiar pelos próximos 84 minutos, partindo do golpe jurídico-parlamentar de 2016 até chegar à eleição de Bolsonaro, em 2018.

Como o próprio título sugere, Indianara é um filme de personagem — ou personagens. Dirigido pelo brasileiro Marcelo Barbosa e pela francesa Aude Chevalier-Beaumel, estreou no Festival de Cannes em 2019, como o primeiro filme brasileiro selecionado para a mostra da Association du Cinema Independant pour sa Diffusion, e concorreu à Palma Queer, ao lado de longas como Dor e Glória, de Pedro Almodóvar, e Bacurau, de Kléber Mendonça Filho. No Brasil, chegou às plataformas digitais no último dia 25 e já está disponível em mais de 195 países pelo MUBI.

Do cemitério, somos transportades direto para a co-protagonista do filme: a Casa Nem, espaço de acolhimento da população LGBTIA+ em situação de vulnerabilidade no Rio de Janeiro. Numa maravilhosa sequência de diálogo, Indianare pede a uma mulher transexual que escolha entre um homem trans ou entre ela mesma, afinal: “você precisa decidir se gosta de homem ou se gosta de pinto”. A efusiva discussão é interrompida por uma treta entre outras duas moradoras. E assim segue o documentário, mesclando momentos de grande tensão a catarses cômicas.

Mais que mera ambientação, a Casa Nem emerge como personagem forte e cheia de vida, até que sua pulsação é interrompida pelos fatos recentes de nossa História…

No primeiro ato, predominam momentos de festa e descontração em meio à luta cotidiana pela sobrevivência e pela existência trans/não-binárie. Mas essa alegria logo é interrompida por uma dura notícia: a vereadora carioca Marielle Franco havia sido assassinada.

Companheira de luta e de partido de Indianare no PSOL e defensora da causa LGBTIA+, Marielle passa a ganhar posição de destaque no documentário. Os registros de sua atuação na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro e nas manifestações de rua então se tornam precioso material histórico para os documentaristas. Narrativamente, a morte de Marielle interrompe a atmosfera descontraída e marca o acirramento de graves tensões que vão se aprofundar até o desfecho do filme.

Indianare se vê obrigade a alterar sua rotina e a instalar câmeras de vigilância em sua própria residência. Acompanhando seu percurso pelas ruas e pelo transporte público da capital carioca, temos a dimensão concreta da vulnerabilidade de uma ativiste LGBTIA+ no Brasil do fascismo em ascensão.

Em meio à ralação cotidiana, numa escalada de tensão e medo, Bolsonaro chega à presidência da República. Elas assistem e reencenam sua posse, num dos momentos mais emocionantes do filme. Em seguida, a Casa Nem recebe ordem de despejo. São tempos perversos para as sonhadoras/es.

Sem adentrar em quaisquer tretas, polêmicas ou contradições (como as acusações e a disputa judicial envolvendo Indianare e a Casa Nem, antiga Casa Nuvem, e sua decorrente expulsão do PSOL), é no cotidiano da militância pública e privada que o filme vai construindo sua heroína.

Depois de passar por toda essa jornada pela sobrevivência pessoal e coletiva, Indianare Siqueira vai ressurgir, apoteótica por entre os escombros, em uma sequência final carregada de simbolismo. Despejades, em seu novo abrigo elas buscam forças para se erguerem de novo, quantas vezes for preciso. E é quando a luz da tela se apaga que o filme reacende em nós. “E aí, onde tudo termina?”. Indianara continua comigo.

* Filme assistido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, 2019 — em uma sala de cinema ocupada, em sua imensa maioria, por pessoas trans e não-bináries.

Bruna Provazi é jornalista pela UFJF, mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual e é idealizadora do blog Ideia Errada.

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