Nico, 1988: a artista por trás da musa

bruna provazi
Ideia Errada
Published in
6 min readAug 11, 2018

“A Femme Fatale de Lou Reed”, “a Factory Girl de Andy Warhol”, “a Dolce atriz-modelo de Federico Fellini”. Esqueça todos esses rótulos sobre Nico, ou Christa, como prefere ser chamada. “Nico, 1988”, é um filme sobre o que realmente importa — ou sobre o que deveria importar — a respeito da artista alemã que iniciou sua carreira musical no Velvet Underground, nos anos 60.

Vencedor da Mostra Orizzonti do Festival de Veneza, com direção da italiana Susanna Nicchiarelli, o longa é uma ficção inspirada nos dois últimos anos de vida da icônica modelo, atriz e cantora, em sua turnê final pela Europa, às vésperas da queda do muro de Berlim. O filme já tem data de estreia marcada para 30 de agosto nos cinemas brasileiros.

Maturidade e plenitude feminina no rock

Se você está atrás de uma cinebiografia sobre a juventude loucona de Nico na efervescente cena proto-punk dos Estados Unidos, esqueça também. Os tempos de Chelsea Girl não são mais do que piscadelas no decorrer do longa, como fotografias de um passado já soterrado. No recorte adotado pela diretora, a jovem modelo e “musa” (para usar essa palavra odiosa) dá lugar a uma roqueira quase cinquentona que faz shows em porões clandestinos em Praga e em bares de hotel na Itália.

Uma senhora roqueira, sim, mas nem por isso menos rebelde, nem por isso menos junkie, nem por isso menos autêntica. Pelo contrário, o filme deixa transparecer que foi na maturidade que Nico encontrou sua plenitude. E ali está ela, verdadeira, devorando despretensiosamente um espaguete de madrugada e escondendo marcas de heroína nas meias.

Seus dramas carregam também o peso da idade. Ela faz críticas ao tempo em que viveu aprisionada em padrões exigidos pela indústria da beleza, como a sufocante obsessão pela magreza. Mas é na tentativa de retomar a relação com o filho Ari que Nico/Christa encontra seu maior desafio. Embora o pai (Alain Delon) nunca tenha reconhecido Ari, a mãe é quem carrega a culpa por não ter conseguido estar mais presente em sua criação.

Uma das primeiras sequências do longa é reveladora da abordagem escolhida por Susanna Nicchiarelli. Em entrevista a uma rádio britânica, Nico se irrita com a insistência de um jornalista em lhe questionar sobre seu passado nos anos 60. “Minha vida começou depois da experiência com o Velvet Underground. Comecei a fazer minha própria música”, desabafa em outra cena marcante.

Essa foi a principal escolha artística e política da diretora — acertadíssima, por sinal. Em suas próprias palavras…

“A vida de Nico foi sempre contada a partir dos homens com quem dormiu. E que acontece sempre às mulheres: parece que o mais interessante da vida delas foram os homens, É claro que Nico dormiu com homens interessantes, a começar por Bob Dylan, mas fiz questão de não falar de nenhum deles, nem mesmo de Alain Delon, que é o pai de Ari [Christian Aaron Boulogne, nascido em 1962; Delon nunca assumiu a paternidade, Ari foi criado por Edith Boulogne, mãe de Delon]. O único homem de que quis falar foi Jim Morrison porque para ela Jim foi importante. Foi ele que lhe deu a ideia para começar a escrever canções — no filme de Oliver Stone [The Doors, 1991], o único momento em que ela aparece é para o sexo oral a Morrison no elevador. Fiz questão de fazer o oposto, não quis falar de nenhum deles, nem de Brian Jones. Mesmo quando alguém pergunta “se ela teve uma história com um dos Rolling Stones”, não mencionamos o nome dele. Quis que isso estivesse nas traseiras do filme.”
(Susanna Nicchiarelli, diretora, em entrevista ao portal português Publico)

Vivemos um bem-vindo boom de cineobiografias de artistas mulheres, mas nem por isso se faz menos necessário explicitar a escolha narrativa adotada. No documentário “Com amor, Carolyn”, as diretoras suecas Malin Korkeasalo e Maria Ramström utilizam técnica semelhante, ao abrir o longa com uma fala de Carolyn explicando o que deveria ser óbvio, mas ainda não é: ela estava cansada de ter que responder perguntas sobre sua relação com Neal Cassady e Jack Kerouac. Dito isso, o documentário passa a centrar-se na trajetória da artista que ficou subjulgada na história como “musa beat de On The Road”. [Escrevi sobre esse filme aqui no link]

Emulando Nico

Outra ousada e super acertada escolha de Susanna Nicchiarelli, sem dúvidas, foi escalar a magnífica atriz e cantora dinamarquesa Trine Dyrholm. Ao invés de se lançar em uma busca pela semelhança física com a biografada, ou de descolar um nome midiático, a cineasta opta pela intensidade. Ela abre mão de encontrar uma atriz parecida ou de tornar Trine Dyrholm parecida com Christa para emular sua essência, acertando em cheio em nossos corações.

“Não é a história clássica da rock star que morre jovem. É a história de uma rock star que com a maturidade encontra a sua voz artística. Não trabalhamos a partir de um objetivo de imitação. A Trine não é parecida com a Nico. Não fui à procura de uma atriz parecida com Nico ou que cantasse como Nico — se a imitássemos, seria uma caricatura. Mas sabia que a Trine era capaz de desenvolver uma personagem, tornando-a mais universal.”
(Susanna Nicchiarelli, diretora, em entrevista ao portal português Publico)

Sexo, drogas e rock n’ roll — Não, pera!

Sabe aquele clichê dos filmes de rock, regados a transas loucas, aviões, quartos de hotel destruídos e um eterno open crack? Então… Esqueça isso aí também. “Nico, 1988” traz a verdadeira essência do rock, ou seja: horas e horas com a bunda em vans apertadas, pulando de sofá em sofá em “hospedagens solidárias”, onde o sexo pode ser constrangedor e a aquisição de drogas, uma verdadeira batalha.

“As pessoas reais são assim. Foi isso que me fez relacionar com Nico: o parecer sempre deslocada. Senti sempre isso toda a vida, todas as pessoas o sentem. Mas nos filmes, e nos filmes sobre o rock, tudo é contado da perspectiva glamourizada, perde-se a sensação de embaraço.”
(Susanna Nicchiarelli, diretora, em entrevista ao portal português Publico)

A diretora Susanna Nicchiarelli e a atriz Trine Dyrholm no set.

Carregando um imenso gravador pra cima e pra baixo durante todo o filme, em dado momento Nico revela tratar-se de uma eterna busca pessoal pelo “som da derrota” — semelhante ao som que ouviu certa vez na infância, enquanto a Alemanha era bombardeada pelos Aliados. Talvez também tenha sido essa a busca da cineasta Susanna Nicchiarelli em sua obra.

Em resumo, “Nico, 1988” é uma das cinebiografias ficcionais mais autênticas que você vai assistir por aí. Estreia nos cinemas brasileiros dia 30 de agosto, com distribuição da Supo Mungam Filmes.

Bruna Provazi é jornalista pela UFJF, mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual e é idealizadora do blog Ideia Errada.

Assista ao trailer.

--

--