O Dilema das Redes: qual a novidade de fato?

bruna provazi
Ideia Errada
Published in
10 min readSep 21, 2020

O ano é 2020. Uma pandemia assola o mundo. Nunca tanta gente passou tanto tempo diante de telas. Para muites, durante a maior parte do ano, o contato com pessoas queridas só foi (ou ainda é) possível por meio das mídias sociais. Dia 9 de setembro: a Netflix lança seu mais novo produto, o documentário “O Dilema das Redes” (“The Social Dilemma”). 15 de setembro deste mesmo ano: Kim Kardashian West e Leonardo DiCaprio anunciam que vão fazer um grande ato em prol da democracia: congelar seus posts no Instagram por 24 horas. Enquanto isso… Donald Trump trava uma batalha épica contra seu novo arqui-inimigo… um aplicativo juvenil chinês. O que tudo isso tem a ver e o que VOCÊ tem a ver com tudo isso?

No post anterior, falamos sobre como jovens de periferia têm conseguido driblar os algoritmos das mídias sociais para empoderar suas comunidades por meio da produção de conteúdo de alta qualidade, acessíveis a um público amplo. Neste post vamos falar um pouco do lado bilionário da força.

“O Dilema das Redes” (Netflix, 2020).

“Você dá uma olhada no smartphone antes de fazer xixi de manhã ou enquanto faz xixi de manhã? Porque é ou um, ou outro”.

A frase é de Roger McNamee, empresário há 35 anos e um dos primeiros investidores do Facebook. Ele é um dos entrevistados do novo documentário da Netflix, “O Dilema das Redes”, que vem causando furor na internet.

Quem assina a direção é Jeff Orlowski, um documentarista do caos. Em seus trabalhos anteriores, Jeff alertou para grandes ameaças mundiais, como derretimento de geleiras, em Chasing Ice (2012), e desaparecimento de recifes de corais, em Chasing Coral (2017) - também produzido pela Netflix. Seu filme mais recente trata de uma ameaça potencialmente ainda mais devastadora: as mídias sociais. Será que ele traz alguma novidade de fato? Vamos lá.

“Gostaria que mais pessoas pudessem entender como isso funciona, porque não deveria ser algo que só a indústria da tecnologia sabe.”

Com essa afirmação, Tristan Harris resume o sentido do longa-metragem. Ele é um ex-designer ético do Google, co-fundador do Center for Humane Technology, e uma das figuras centrais entrevistadas no documentário. Seu ponto central é que os problemas que conhecemos hoje relacionados às mídias sociais estão todos conectados, e é isso que o hall de entrevistados vai demonstrar, ao longo de 1 hora e 34 minutos de filme.

Neste sentido, “O Dilema das Redes” traz um enquadramento relevante. Ele aponta a câmera para os criadores desse Frankenstein, ou seja, os especialistas por trás das engrenagens das maiores e mais viciantes mídias do mundo: Instagram, Facebook, Twitter e Pinterest. (Em sua imensa maioria, homens brancos cis, diga-se de passagem.)

Tristan Harris (à esquerda) e Roger McNamee (à direita), ambos também viciados. rsrs

Usuários X bilionários

“Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de ‘usuários’: a de drogas e a de software.” — Edward Tufte

Essa é uma das frases de efeito lançadas em fundo preto, como sentenças na mente do espectador. É de autoria de Edward Tufte, professor da Universidade de Yale e um dos mais importantes especialistas em infografia. “O Dilema das Redes” vai se debruçar, durante a maior parte do tempo, em tratar de um desses males: o vício.

Estima-se que exista cerca de um bilhão de fumantes no mundo hoje. Segundo pesquisa realizada na França, um terço dos entrevistados considera que fumar até 10 cigarros por dia não aumenta a probabilidade de terem câncer de pulmão. Ou seja, a maioria dos fumantes sabem que o tabagismo é um fator de risco, no entanto, consideram que esses riscos não estão relacionados a elas, somente a outras pessoas.

Assim como a maioria dos fumantes sabem que fumar faz mal à saúde, é provável que grande parte dos usuários da Netflix já tenham ouvido falar minimamente dos malefícios das mídias sociais para suas vidas. Alguns desses problemas são citados nos primeiros cinco minutos do longa, por meio de trechos de programas jornalísticos: depressão, filtros-bolha, disseminação de discursos extremistas e as tão faladas fake news.

Embora já tenhamos lido e ouvido muitas teorias (conspiratórias inclusive) sobre esses problemas, aqui temos a comprovação coletiva e didática desta grande ameaça engenhosamente construída. Não se trata apenas de admitir que existem brechas no sistema, mas sim de revelar que tais “falhas” na realidade estão em seu DNA. Na economia da atenção, transformar as pessoas em usuários é o que torna essas empresas bilionárias.

Segundo o entrevistado mais apocalíptico do documentário, a vida lá fora não apenas é possível como é muito mais interessante. Trata-se do cientista da computação Jaron Lanier, uma das maiores referências (e críticos) do Vale do Silício, considerado o criador da realidade virtual, e autor do livro: “Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais”. Segundo ele, as bases da internet foram fundamentadas em um modelo de negócio regido pelas propagandas, o qual traz inúmeras consequências degradantes, como o fim do livre-arbítrio e a geração de emoções negativas e percepções distorcidas da verdade. Para ele, o apagão seria não apenas uma saída individual, mas também a única maneira de salvar a internet.

“O Dilema das Redes” (Netflix, 2020).

A questão é: dá pra escapar das mídias sociais hoje?

Deletar todas as redes ou passar mais tempo offline certamente já deve ter passado pela sua cabeça alguma vez, assim como passa pela minha o tempo todo. Mas o quanto isso é realmente possível e PARA QUEM isso é possível, agora?

A digitalização do trabalho e de todos os aspectos da vida que estamos experimentando em 2020 parece ser um caminho sem volta em muitos aspectos. Eu tenho colaborado com profissionais de áreas diversas que costumavam ser totalmente avessos à tecnologia e à exposição no mundo online mas que, na situação atual de crise, se viram diante da necessidade de terem uma presença digital forte para ganharem o pão. O jogo é esse, e quem não topar as regras será apagado do mercado.

E isso não é tudo. As mídias sociais não foram projetadas apenas para nos viciar, mas para influenciar nossos comportamentos e — por que não? — moldar nossa visão da realidade. Mais uma vez, não se trata de conspiranóia, mas da comprovação, com o testemunho dos próprios criadores deste Frankenstein, de algo que já vinha sendo notado e estudado por nós há tempos. A partir daí, o documentário vai adentrar, ainda que de forma breve e insuficiente, no verdadeiro X da questão: o poder de persuasão do software.

“O Dilema das Redes” (Netflix, 2020).

A ponta do iceberg: o algoritmo é político

Era véspera do Dia das Bruxas quando a rede de rádio estadunidense CBS interrompeu sua programação musical para noticiar uma suposta invasão extraterrestre no estado de Nova Jersey, em 1938. A “notícia urgente” na realidade era uma dramatização do livro de ficção científica “A Guerra dos Mundos”, de Herbert George Wells, adaptada e dirigida pelo jovem desconhecido Orson Welles. Usando o formato de um programa jornalístico, a peça desencadeou uma onda de pânico em toda a costa leste dos EUA. Segundo a CBS, o programa foi ouvido por cerca de seis milhões de pessoas. Pelo menos 1,2 milhão delas acreditaram ser um fato real, e meio milhão tentaram fugir do perigo. Linhas telefônicas ficaram sobrecarregadas, aglomerações e congestionamentos foram formados, gerando um verdadeiro caos. O episódio é considerado um marco na história da comunicação do século 20.

Quase 80 anos depois que a “rádio do pânico” foi ao ar, a sociedade parece ter aprendido a distinguir realidade e ficção. No entanto, uma grande parte da população brasileira ainda parece propensa a acreditar em mitos como o da “mamadeira de piroca”. Será que tantas pessoas estariam insistindo que a terra é plana ou que a cloroquina é a milagrosa salvação para a Covid-19 se essas “verdades” não tivessem sido despejadas nos seus grupos e feeds, incessantemente, por Mark Zuckerberg?

Temos a comprovação de que teorias da conspiração são entregues pelos algoritmos a usuários mais propensos a acreditar nelas. Assim como tivemos a comprovação da interferência dos EUA na eleição de Bolsonaro, por meio de redes como o Facebook, no famoso escândalo que envolveu a empresa privada Cambridge Analytica. O caso brasileiro é apenas um dos muitos casos de ameaça à democracia citados superficialmente no documentário.

“É a mudança gradual, leve e imperceptível em nosso próprio comportamento e percepção que é o produto.” — Trecho do doc.

Ou seja, se olharmos para as mídias apenas do ponto de vista do vício, corremos o risco de perder o perigo real por trás de tudo isso: o fato de que o algoritmo é político e, que isso pode trazer consequências inclusive para as democracias.

Quem tem medo do Tik Tok?

Outra contribuição significativa do filme é tocar nessas feridas no exato momento em que Donald Trump declara guerra ao grande vilão Tik Tok, com o apoio do Facebook. Qual a principal peça da acusação? O medo de que o governo da China possa reunir informações sobre os cidadãos estadunidenses ou divulgar uma visão favorável aos chineses para o mundo, por meio do aplicativo.

Donald Trump e Mark Zuckerberg.

Segundo revelou recentemente o veículo The Wall Street Journal, Mark Zuckerberg participou de um jantar na Casa Branca, em 2019, no qual alertou Donald Trump que controlar o avanço das empresas chinesas de tecnologia deveria ser prioridade do governo, pois elas representariam um risco para os valores e o domínio tecnológico do país. O CEO disse ainda que o Tik Tok não teria o mesmo compromisso do Facebook com a liberdade de expressão. Haja óleo de peroba…

Nos últimos meses, o governo dos EUA determinou que o Tik Tok venda suas operações para uma empresa estadunidense ou feche seus negócios no país.

Mas o que levaria a maior plataforma de streaming do mundo a lançar um documentário sobre este tema e com este enquadramento, em setembro de 2020?

Tudo no timing

Nos últimos meses, organizações de direitos civis dos EUA têm promovido a campanha: Stop Hate for Profit (“Pare de odiar por lucro”), com o objetivo de boicotar o Facebook por sua distribuição de conteúdo tóxico. Em julho, a campanha convenceu mais de 1.000 anunciantes, incluindo Ben & Jerry’s e Puma, a pausarem seus gastos com anúncios na plataforma. Entre as principais empresas que declararam boicote, os gastos foram reduzidos de 26 milhões de dólares para 507 mil dólares naquele mês.

Crédito da imagem: rappler.com

Em 15 de setembro, apenas seis dias após o lançamento de “O Dilema das Redes”, foi a vez do Instagram ser alvo de outra ação. Celebridades donas de alguns dos maiores perfis na rede, como Kim Kardashian West, Leonardo DiCaprio e Katy Perry congelaram seus posts durante 24 horas. Quando o degelo terminou, Demi Lovato publicou uma série de mensagens educativas, explicando para seus fãs adolescentes como empresas de mídias promovem desinformação e discursos de ódio.

Seguindo a mesma linha, Kim Kardashian West postou:

“Adoro poder me conectar diretamente com vocês através do Instagram e do Facebook, mas não posso ficar sentada e calada enquanto essas plataformas continuam a permitir a propagação de ódio, propaganda e desinformação. A desinformação compartilhada nas redes sociais tem um sério impacto em nossas eleições e prejudica nossa democracia. Junte-se a mim amanhã, quando estarei ‘congelando’ minha conta do Instagram e do FB para dizer ao Facebook para #StopHateForProfit (#PareDeOdiarPorLucro).”

Esse é apenas um, dentre muitos exemplos possíveis, de que o documentário da Netflix vem em sintonia com o momento atual de crítica às práticas promovidas pelas empresas de software, principalmente no que diz respeito à coleta de dados, manipulação da realidade, desinformação e disseminação de discursos de ódio.

Essa movimentação toda significa também que as empresas de mídias sociais vão ter que se reiventar em 3, 2, 1, ainda que seja do feed pra fora, porque já está mais que comprovado que deu ruim pro modelo atual.

E a autocrítica da Netflix?

Chega a ser irônico a gigante Netflix denunciar a economia da atenção sendo que ela mesma construiu seu império sustentada nessas bases, e em uma série de gatilhos mentais feitos para prender o usuário maratonando a nova série ultra-segmentada do momento, assim como todas as plataformas que surgiram depois…

Porém, um nicho é um nicho, e já ficou mais que comprovado que este é um dos assuntos importantes do momento. Então não deixa de ser positivo que seu alcance gigantesco seja usado para trazer essa crítica à tona, ainda que de forma parcial.

Afinal, qual lição podemos tirar de tudo isso?

Se você chegou até este post, é porque ainda não seguiu a sugestão de Jaron Lanier de deletar todas as suas mídias sociais. Se alcançar a paz espiritual neste paraíso offline ainda não é uma opção viável para a maioria de nós, sobretudo em tempos de crise, será que conhecer os malefícios das mídias sociais pode nos tornar menos suscetíveis ao seu poder?

Já que desativar o capitalismo ainda não é uma realidade, podemos começar desativando todas as notificações das redes, paliativo defendido por praticamente todos os entrevistados. Deletar aplicativos e deixar o celular fora do quarto na hora de dormir são outras soluções de curto prazo para redução de danos. Como todo vício, você não pode cortá-lo de uma só vez. Precisa reduzir aos poucos. Então aumentar os intervalos em que você checa o celular pode ser uma outra forma de começar o seu detox pessoal.

Talvez a batalha coletiva passe por transparência e informação, tal como as, cada vez maiores e mais impactantes, tarjas do Ministério da Saúde estampadas nos maços. É preciso difundir mais e mais conhecimento sobre as engrenagens dessas empresas que se tornaram parte “natural” de nossas vidas em tão pouco tempo.

Mas qual a solução para um sistema que permite que meia dúzia de empresas de tecnologia concentrem o capital mundial? Bastaria pessoas bem intencionadas apertando os botões para que as engrenagens fossem usadas em prol da humanidade? É possível reformar os softwares? Quais valores deveriam guiar essas empresas? Dá pra separar lucro e política? Por fim, tem paliativo pro capitalismo?

Essas questões não estão no doc. e tampouco serão respondidas aqui, mas talvez sejam parte estruturante desse grande iceberg para o qual precisamos olhar profundamente, indo além das rachaduras na superfície.

Bruna Provazi é jornalista, mestra em Ciências Humanas e Sociais, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual.

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