Poly Styrene e a invisibilidade das mulheres na música

bruna provazi
Ideia Errada
Published in
4 min readJul 25, 2020

** Texto publicado em abril de 2011 no meu antigo blog.

Morreu nesta segunda-feira, aos 53 anos, Poly Styrene, ex-vocalista da banda X-Ray Spex, vítima de câncer de mama. Uma das personagens pioneiras da cena punk rock britânica, Poly — ou Marianne Joan Elliott-Said, como nasceu -, influenciou futuras gerações de garotas no rock e todo o movimento riot grrrl. Poly tinha acabado de lançar um álbum solo (Generation Indigo), que passou batido pela mídia. Se você gosta de rock e nunca ouviu falar dela, não se assuste: talvez tenha a ver com o tal do machismo.

“Some people think little girls should be seen and not heard but I think On Bondage Up Yours!”

Não é estranho que a maioria das pessoas que usam camiseta do Ramones nunca tenha ouvido falar do Bikini Kill? Não é meio constrangedor que o Runaways só tenha ficado popular mesmo depois do filme? Não é triste que as próprias bandas femininas geralmente tenham só referências masculinas? Pois é, igualmente estranho, constrangedor e triste é que os fãs da galera do Johnny Rotten também nunca tenham ouvido falar de Poly Styrene. E, pra mim, é inaceitável que as matérias jornalísticas, pesquisas acadêmicas e conversas de boteco sobre o movimento punk quase sempre (salvo as exceções que confirmam a regra, provavelmente sob intervenção de alguma feminista massa) não abordem o riot grrrl, essa revolução que foi tão fundamental pro cenário machista do rock.

E se a gente for questionar por que isso acontece, é preciso lembrar que vivemos em uma sociedade que ainda exclui e discrimina as mulheres, e que ainda é extremamente machista, racista e homofóbica. Pra fazer esse debate, podemos retomar o ótimo texto da Tica Moreno sobre feminismo e música livre, que discute como até mesmo a cultura livre está sujeita a reproduzir, mesmo de forma inconsciente, as desigualdades e discriminações que dominam nossas relações:

“A gente pode identificar alguns mecanismos machistas desse mundo de hoje e ver como se refletem na música.

Separação do que é trabalho de homem e trabalho de mulher, que a gente chama de divisão sexual do trabalho. É o mecanismo que historicamente exclui as mulheres do mundo público e que faz com que ainda haja uma super desigualdade salarial no Brasil. Mulheres ganham em média 67% do salário dos homens, as mulheres negras ganham menos que as mulheres brancas. Isso também acontece no mundo da música? Operador de luz, de som e holdies costumam ser homens, enquanto as mulheres geralmente costumam fazer maquiagem, cuidar do figurino d@s artistas e ficarem bonitas na porta recepcionando convidad@s. E quem toca bateria e guitarra? Na maioria das vezes, são homens. A gente sabe que não é por ter menos capacidade pra tocar instrumentos (e se você ainda achar isso, olha como você tá equivocado: Anne Paceo, Ellen Oléria,Esperanza Spalding, Some Community…). Então… até tem, mas são poucas mulheres instrumentistas. Por que??? E como muda isso?

Mercantilização do corpo das mulheres — tá presente nas propagandas de cerveja, na indústria do turismo sexual — em qualquer lugar que as mulheres sejam tratadas como mercadoria, julgadas e “valorizadas” a partir do seu corpo. E no mundo da música? Tem uns grupos musicais que tocam no Faustão em que o único espaço da mulher é dançando de shortinhos, e tem que ter corpão. Muitas meninas que tocam em banda relatam que no palco são julgadas não pela música que fazem, mas pelo corpo, e por serem mulheres — fiu fiu, gostosa, etc é mais comum do que elogios ou críticas às mulheres pela sua produção como artistas.

Violência contra a mulher. A cada dois minutos, cinco mulheres são vítimas de violência no Brasil. 16% de mulheres já levaram tapas, empurrões ou foram sacudidas, 16% sofreram xingamentos e ofensas recorrentes devido a sua conduta sexual e 15% foram controladas a respeito do local aonde iam e com quem sairiam. Além disso, 13% sofreram ameaças de surra e 10% já foi de fato espancada ao menos uma vez na vida. A violência sexista, além da agressão física, pode ser de várias formas. E isso tem na música? O exemplo mais forte que vem na cabeça são as letras de música que legitimam a violência e desqualificam as mulheres, tipo “um tapinha não dói”, ou “Eu tô achando que esta mulher danada Ficou mal acostumada e tá gostando de apanhar Ajoelha e chora”, ou “Quero uma mulher que saiba lavar e cozinha, que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar”, ou “mulher finge bem, casar é negócio”, ou “Subi no muro do quintal e vi uma transa que não é normal. E ninguém vai acreditar, eu vi duas mulher botando aranha prá brigar… vem cá mulher deixa de manha minha cobra quer comer sua aranha” (….)”

No feminismo a gente luta diariamente contra tudo isso aí, ainda que insistam em dizer que hoje em dia é tudo igual, ou — pior — que “é só questão de escolha da mulher”. É pra lutar contra isso também, e pra que um dia seja, realmente, questão de escolha, que a gente se organiza na Marcha Mundial das Mulheres… que a gente faz o Festival Mulheres no Volante… E a internet tá aí pra mostrar que nós somos muitas… e que o feminismo é amplo, necessário e extremamente atual.

Descanse em paz, Poly!

Bruna Provazi é jornalista pela UFJF, mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual e é idealizadora do blog ideiaerrada.

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