Sleater-Kinney is for lovers

bruna provazi
Ideia Errada
Published in
11 min readFeb 19, 2018

Um presente de Carrie Brownstein a todas nós

Quando todos/as os/as fãs já haviam secado suas últimas lágrimas e o mar parecia finalmente ter se acalmado no riot grrrl, elas anunciaram um álbum novo, um clipe novo, e uma turnê. Como?! Não existia a menor possibilidade de aquilo estar acontecendo em 2015. Pois bem… Alguns livros nos ensinam coisas, nos tornam pessoas melhores e nos fazem olhar pras coisas de forma diferente quando os fechamos. Como bem definiu o Lambda Literary, “Hunger Makes Me a Modern Girl — A Memoir é “um presente aos fãs do Sleater-Kinney”. Nunca mais vou olhar pro SK da mesma maneira depois desse livro. Esse post é sobre a autobiografia da Carrie Brownstein, mas também é sobre como o SK mudou a minha vida, afinal, não daria pra falar de uma coisa sem falar da outra.

Em 1995, o vídeo-cassete era substituído pelo DVD-Player nas prateleiras das lojas e a Microsoft apresentava ao mundo seu mais novo filho, o Windows 95. O mundo enfim descobria o nome do ex-baterista do Nirvana, com o lançamento do primeiro álbum do Foo Fighters. No Brasil, a família brasileira abria espaço em sua sala de estar para a criançada reproduzir as coreografias do “É o Tchan” e a já clássica “Na Boquinha da Garrafa”, da Companhia do Pagode. Ao final do Domingo Legal, todos cantavam juntos o álbum inteiro dos Mamonas Assassinas. Neste mesmo ano, FHC assumia a presidência do Brasil e Simone emplacava “Então é Natal” — como sobrevivemos tanto tempo sem esse hino? Neste mesmo ano tão emblemático para a música brasileira, Sleater-Kinney gravava seu primeiro de nove álbuns (8 de estúdio e um ao vivo) na Austrália(!!), o qual mudaria a minha vida e a vida de muitas e muitas gerações de riots ao redor do mundo.

Pra começar, quem se muda pro outro lado do globo pra montar uma banda? Alguém com juventude, energia, algum apoio financeiro, um desejo muito grande de fazer algo único, que não soasse como todas as outras bandas de Olympia, e, claro, muito amor — o componente fundamental dessa que foi considerada a melhor banda dos EUA pelo Greil Marcus.

Carrie inicia sua autobiografia se descrevendo como uma fã, antes de uma artista/musicista. E esse belíssimo parágrafo poderia resumir toda a minha vontade de escrever esse post:

“That’s why all those records from high school sound so good. It’s not that the songs were better — it’s that we were listening to them with our friends, drunk for the first time on liqueurs, touching sweaty palms, staring for hours at a poster wall, not grossed out by carpet or dirt or crumpled, oily bedsheets. These songs and albums were the best ones because of how huge adolescence felt then, and how nostalgia recasts it now.” (Pág. 3)

Em 2001, após idas e vindas amorosas, elas já haviam gravado seu quinto álbum (“All Hands on The Bad One”) e lotado turnês pelo mundo antes mesmo dos smartfones. Neste mesmo ano de 2001, o suprassumo da tecnologia chegava à minha residência: a tão sonhada internet discada da IG. As tecnologias que usamos são parte de nosso modo de se relacionar com o mundo. Não é possível para alguém da Geração Z compreender afetivamente como funcionava a nossa relação com as coisas naquela época. E não é possível descrever minha relação com o SK sem passar pelo modo como tínhamos acesso (ou não) à música naquela época.

E foi Sofia, uma menina de cabelo rosa que tocava em uma banda nos confins de Nova Friburgo, no RJ, quem me apresentou, de forma totalmente despretensiosa, um universo totalmente novo. Era um sábado qualquer em que eu aproveitava o custo de “um pulso só” para ficar conectada durante todo o final de semana — para desespero dos meus pais, que não podiam usar o telefone por dois dias, numa Era pré-celular. Uma Era pré-Youtube, pré-Facebook, pré-Spotify, pré-Google. Pré-tudo! Nesse longínquo passado, nosso acesso a qualquer música que não tocava na rádio e não era vendida nas lojas de discos era pelo bom e velho compartilhamento de mp3. No mIRC não existiam avatares. Esteticamente, o mIRC era praticamente um bloco de notas p2p, ou um Twitter hipster. Conversávamos no escuro, com nicknames adolescentes, com outros adolescentes que nunca tínhamos visto sequer uma foto.

E nesse sub-mundo da rede, Sofia me enviou muitas e muitas bandas. Versões inéditas de músicas lado B do Hole, clássicos do Bikini Kill, e, de repente, numa tarde qualquer conectada num PC na copa da casa dos meus pais, ela me enviou uma sequência de suas músicas preferidas de uma banda com nome esquisito e grande demais pra caber no título dos arquivos. “All Hands On The Bad One”, “One More Hour”, “Words and Guitar”, “Her Again”, “I Wanna Be Your Joey Ramone”, “The Professional” e “Turn It On”.

“If you want me, it’s changing
If you want, everything’s changing
If you want, the sky would open up
If you want, your eyes could open up”
(“Start Together”, Sleater-Kinney)

Eu já tinha recebido músicas de desconhecidos de muitos estilos diferentes naquele chat às escuras, de Meshuggah à versão de “Baby One More Time” do Sugarcoma. Mas quando ouvi Sleater-Kinney pela primeira vez, tudo mudou. Os riffs deliciosos, as duas guitarras conversantes, e ela: Corin Tucker. Naquela época, não achei que fosse possível uma banda tocar daquele jeito. E Sofia então me enviou “No Make Up Tips”, do Dominatrix, e meu pequeno mundinho adolescente deu outra volta irreversível, mas essa é outra história.

Não tenho palavras pra agradecer à Sofia, de quem obviamente eu perdi o contato com o fim do Orkut, e que hoje provavelmente nem escuta essas bandas mais. Mas aquelas mp3 baixadas numa tarde qualquer fincaram uma estaca importante na minha cabeça, criaram uma espécie de parâmetro pro que eu viria a ouvir ou eventualmente a tocar depois. Sofia, onde quer que você esteja, muito obrigada.

Carrie descreve a receita da essência e originalidade do som delas, tão inexplicável pra mim aos 14 anos:

“We wanted to sound like a full rock band. I supose it’s strange that our solution wasn’t to simply add a bass player, but we didn’t. Living in Olympia, we had lost perspective on what a tradicional group looked or sounded like; band configurations were abnormal, either multi-limbed or conspicuously amputated. Additionally, neither Corin nor I were interested in playing too many bar or power chords. So my chords were half formed; I was always trying to leave room for Corin. My entire style of playing was built around somebody else playing guitar with me, a story that on its own sounds unfinished, a sonic to-be-continued, designed to be completed by someone else.” (Páginas 86–87)

E a guitarrista-vocalista revela muito mais nesse livro. Cada componente que absorveu de outras bandas para desenvolver seu próprio estilo, como as linhas de vocal e guitarra do Slant 6, ou a importância da postura política da banda para os fãs, como a do Team Dresch. Ela nos conta das sensações que teve ao assistir muitas bandas ao vivo, do Nirvana tocando de surpresa em um campus universitário até a turnê em mega-estádios em que o Sleater-Kinney abriu pro Pearl Jam. Mas, sem dúvidas, o mais emocionante deles é o relato apaixonado de seu primeiro show do Heavens to Betsy. Carrie, aliás, não poupa páginas para transbordar sua admiração pela potência do vocal de Corin Tucker. Uma admiração que começa nos anos 90 e segue até os dias atuais:

“Her voice is the answer to so many of my questions, a validation, as if she knows the map of my veins.” (Pág. 240) — Carrie, te entendo.

É claro que o relacionamento afetivo entre as duas será mencionado no decorrer do livro. Talvez com menos grau de detalhamento que nosso ímpeto groupie desejaria, mas de maneira suficientemente sincera e corajosa para conseguir dar liga à história toda da banda.

Se esse livro é, sobretudo, um presente aos fãs do Sleater-Kinney, é porque ele também é uma versão oficial de todos os álbuns. Ali está todo o contexto: o estado de suas mentes e corpos durante a criação de cada letra, de cada melodia… Cada história vivida na turnê de um novo álbum agregando componentes para a criação do seguinte… Cada acontecimento ou desafio pessoal vivido servindo de ingrediente para uma resposta mais feroz ou sarcástica nas canções posteriores. Tudo passa a fazer sentido de uma maneira impossível anteriormente, sobretudo se seus primeiros contatos com o som delas vieram via conexão discada, de mp3 solta em mp3. Agora está tudo ao alcance do Spotify para você se debruçar sobre as letras, riffs e batidas enquanto revira as páginas.

E esse relato sinceramente desconcertante traz algumas surpresas desconfortáveis pra gente. Como descobrir que um de meus álbuns preferidos, “The Hot Rock”, foi o mais tempestuoso de todos, surgido num contexto de rusgas entre Carrie-Corin. Igualmente chocante foi perceber que “Start Together” não se trata de um título romântico, mas sim de um não-título, um título provisório pra uma música, e cujo único significado é o literal: as três começam tocando juntas — coisa rara no SK. É um tanto chocante descobrir que toda a beleza que eu via nas músicas desse álbum e que consiste-se basicamente nas duas linhas distintas, e mais demarcadas do que nunca, de vocais e guitarras não foram senão fruto de um contexto belicoso em que estava “cada uma prum lado” mesmo. Igualmente impactante foi descobrir que “One Beat” é outro título-guia, fazendo referência à batida constante de Janet Weiss. E como ouvir “Sympathy” da mesma forma depois de descobrir que ela é uma súplica desesperada da mamãe Corin pela vida de seu primeiro filho, nascido prematuro. E que a gravação dessa música foi a única vez em que Carrie e Janet choraram em estúdio, quando Corin gravou o vocal todo num só respiro. Pra mim, que sempre tive uma relação com a música muito mais ligada ao instrumental, redescobrir as letras do SK foi como redescobrir a banda, tantos anos depois.

À medida que os álbuns vão sendo descritos, vai aumentando a curiosidade em saber quais motivos levaram a melhor banda dos EUA a terminar depois de uma década, sobretudo, depois de fazer talvez o melhor álbum de sua carreira: “The Woods”. Até onde ela vai nos contar? O suficiente pra me fazer lacrimejar nos capítulos finais, quando Carrie descreve corajosamente seus problemas de saúde e a avalanche de bad que veio depois, culminando em alguns poucos shows de uma despedida precoce e não programada da banda.

Nas últimas páginas, Brownstein então dá a volta completa e chega ao ponto de partida do livro, ao maravilhoso prólogo que nos fez ter ainda mais vontade de ler… É quando ela explica a auto-referência inconsciente na letra de “Jumpers”.

“Be still this old heart
Be still this old skin
Drink your last drink
Sin your last sin
Sing your last song
About the beginnig
Sing it out loud
So the people can hear
Be still this sad day
Be still this last hop
Fear your last fear

I could barely get the words out. When we finished the song, Corin and I were both crying. It’s when and how I said my own good-bye.” (Pág. 221)

Entendemos os motivos, o contexto, tudo. E tudo que queremos é dar um abraço na autora das memórias. Entretanto, sabemos desde o início que o final é feliz. E ansiamos, então, pra saber como elas colocaram um álbum de pé, aparentemente do nada, em 2015, quase uma década depois de dar adeus aos fãs.

A resposta é simples e natural. Elas nunca deram adeus a si mesmas de fato.

“In 2011, Fred Armisen and I were at Corin and Lance’s house. We were sitting on a lumpy behemoth of a couch that the Tucker-Bangs family called ‘mocha chenille’, showing them an early cut of a Portlandia episode that featured their son, Marshall. Out of the blue, Corin asked if I thought Sleater-Kinney would ever play again. The answer was obvious.

We kept it a secret. Like when we’d traveled to the other side of the world in order to form our band.” (Pág. 238)

Então de repente é 2015 e acontece o improvável. Minha banda preferida retorna “repentinamente”, depois de quase 10 anos de pausa. Não existia a menor possibilidade de aquilo estar acontecendo em 2015. Não existia a menor possibilidade de eu perder aquilo, como quer que tenha acontecido. Precisava dar um jeito de vê-las. E dei. Dois jeitos. No dia 18 de março de 2015 lá estava eu em Berlim, quase infartando na grade à frente de Corin e, no dia seguinte, estava novamente na mesma posição estratégica, em Amsterdã. Me posicionar na grade à frente de Corin Tucker, por duas noites seguidas, e poder dizer, entre uma música e outra “Corin, I luv u” e vê-la abaixar a cabeça, entre sorridente e sem graça, foi um dos melhores momentos da minha vida. “This music doesn’t pay that well, but the fans are allright”, queria que ela tivesse pensado sobre mim, mas outra coisa que Carrie me desmistificou com esse livro foi que, obviamente, muitas outras fãs já haviam dito isso em muitas outras noites, em todas as partes do mundo.

O dia em que fiquei na grade da Corin. ❤ Berlim, 18/03/15.
Setlist conseguida pela Ana pra gente com muito carisma, rs. ❤ Amsterdã, 19/03/15.

Carrie encerra o livro sem discorrer muito sobre os detalhes do retorno e sobre as inspirações para seu novo álbum, “No Cities To Love” — talvez precisasse de um distanciamento temporal maior pra analisar o presente?

O que eu tenho achado desse álbum desde a primeira vez que o ouvi é que ele soa como uma junção de duas metades que se separaram há tempo considerável para que não sejam mais “uma coisa só”. Janet seguiu tocando em mil bandas desde o final/interrupção do SK. E a dupla Corin-Carrie remou em águas próprias, cada uma desenvolvendo e aprofundando seus estilos em trabalhos paralelos. No primeiro álbum da Corin Tucker Band, vemos um retorno à densidade do Heavens to Betsy. Já tocando com Wild Flag, Carrie Brownstein parece ter dado vazão a seu lado cômico e divertido, assim como no papel de atriz e roteirista do seriado Portlandia. Se antes o SK soava como uma coisa só, construído a três pares de mãos, agora é como se cada canção tivesse uma assinatura própria, como se pudéssemos facilmente definir o eu-lírico de cada uma delas. As fronteiras se tornaram ainda mais nítidas. Literalmente, como um casal que se separou e, anos depois, se reencontra totalmente diferente prum revival esquisito, mas ainda assim completo. Ainda assim, delicioso. O que virá depois? Ansiamos pelo bis.

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