Um par de coxas, por favor

bruna provazi
Ideia Errada
Published in
3 min readJul 25, 2020

** Texto publicado em abril de 2011 no meu antigo blog.

“Você é um pedaço de carne! Eu te peguei em um açougue e te usei! Você é gostosa sim, mas é só um par de coxas! Para ser mulher de verdade precisa mais do que ter silicone! O meu casamento é muito mais importante do que você!”, dispara Cortez, humilhando-a ainda mais.

Natalie se ajoelha, agarra-o pelas pernas e se declara, mas o banqueiro é irredutível. Ele avisa que ela deve deixar o quarto em uma hora, e sai.

Cena que vai ao ar nesta quinta na novela Insensato Coração, da Rede Globo.

Não, não é literatura de banca de jornal. A citação acima é do capítulo que vai ao ar na próxima quinta-feira (21/04/11), na novela das nove da Globo, Insensato Coração. A “notícia” me chegou através de uma lista de e-mails (Blogueiras Feministas) e, como já disse aqui, a gente precisa escrever mais sobre o que se passa na mídia de massas, então resolvi dar meu pontapé inicial.

Pelo que entendi do babado, a Deborah Secco (fazendo o mesmo papel de sempre) estava tendo um caso com o banqueiro interpretado por Herson Capri (Cortez), daí ela gravou os dois fazendo sexo e mandou a gravação da esposa do cara, o que culminou na cena descrita acima.

“Nós vivemos em uma sociedade que ensina: NÃO SEJA ESTUPRADA ao invés de NÃO ESTUPRE”.

Talvez vocês estejam pensando que o fato de Cortez ser o vilão da trama justifique a coisa toda, né? Que esse trecho de péssimo gosto do roteiro foi escrito intencionalmente, pra explicitar que o cara é babacão mesmo, né? Mas, olha… Em um país em que se elegem Bolsonaros e atiraram lâmpadas em homossexuais na Paulista, em que se veem, todos os dias, notícias de mulheres assassinadas por ex-maridos/namorados/parentes e continua se achando que foi um “caso isolado” ou que, provavelmente, “ela mereceu”, acho que não dá pra passar batido assim, não.

Vocês lembram quando o ex-BBB Marcelo Dourado disse que “hômi não pega AIDS transando com mulher” e a Globo botou um simples quadrinho de aviso do Ministério da Saúde do tipo “pega, sim”? Daí o CQCista dá voz a quem?? Ao Bolsonaro. E cadê o Jean Wyllys pra contra-argumentar? Cadê o direito de resposta e de representação na televisão que é concessão pública?

Daí aparece a Deborah Secco apanhando no horário nobre e a galera acha normal: “é periguete”. Afinal, pra quem divide as mulheres em #putas e #santas, bate nas #putas e segura as #santas em casa, um tapinha não dói. Ainda mais se for um tapinha entre duas mulheres. Ou vocês ainda não repararam que toda novela da Globo tem duas musas se estapeando? Normal… Alguém ainda acredita em amizade feminina? Ah, tá… Homens se xingam na cara e falam bem uns dos outros pelas costas / mulheres se elogiam, só até que virem de costas. Quem nunca recebeu um desses e-mails sexistas? Quem nunca riu dessas piadas em um programa de tevê?

A mídia não constrói valores, nem visões. No entanto, ajuda a legitimar determinados preconceitos e comportamentos quando dá visibilidade a alguns poucos e deixa sem voz os outros muitos… Quando deixa você achar que a sua opinião é minoria e acaba silenciando-a pela da maioria…

A tal da solidariedade entre as mulheres com certeza não é pauta no jornal diário, muito menos vira cena de novela. Mas ela existe, ainda que a artchy não queira representar a diversidade da vida.

Bruna Provazi é jornalista pela UFJF, mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual e é idealizadora do blog Ideia Errada.

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