Algumas considerações penais acerca da discriminação perpetrada por um cliente do ifood a um motoboy — entregador delivery

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8 min readSep 3, 2020

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Escuta-se por vários cantos do Brasil que nele reina a democracia racial. Todavia, não mais silenciosamente, os atos negam essa tese, os quais demonstram atitudes racistas. Isso está perceptível no vídeo, veiculado pela mídia, em que um entregador delivery, Matheus Pires, um negro, foi discriminado pelo cliente da IFOOD, Mateus Abreu Almeida Prado Couto, um branco, no Município Valinhos-SP[ii]. Ambos Mateus, mas nem a grafia do nome é comum entre eles.

O que realmente existe neste país, de tamanho continental, é um racismo estruturado a partir das relações sociais, sendo um fenômeno social, nos termos do entendimento do STF, no julgamento do HC 82.424/RS[iii]. Isso tem como causas um Brasil colônia e um Brasil escravocrata. As características desses estados do Brasil, ainda, estão presentes e fortalecidas na atualidade, mesmo com outra roupagem.

Portanto, os mandos, os preconceitos, as discriminações, as segregações, as estigmatizações, os sentimentos de ódio e desprezo, ou seja, relações que descaracterizam o princípio da igualdade, estão circulando, na teia social, como se fossem naturais, contra aqueles que destoam do padrão branco, cristão e heterossexual. Assim, muitos pensam que possuem o direito de discriminar o outro devido à cor de sua pele, a sua religião e a sua sexualidade.

Isso ocorreu no caso do vídeo mencionado acima. O cliente da IFOOD ofendeu o entregador delivery, no dia 31 de julho, cujo ato, que caracteriza discriminação, está tipificado como crime na Lei 7.716/1989, em seu art. 20 — Lei contra o racismo. A sanção aplicada é uma pena privativa de liberdade, na modalidade reclusão, de 01 a 03 anos e multa. Dessa forma, o agente considerado culpado, por meio de uma decisão penal condenatória transitada em julgado, ou seja, decisão em que não cabe recursos, deverá cumprir uma pena privativa de liberdade e de multa, que são espécies de penas.

Insta evidenciar que o crime de racismo foi tratado na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLII, Capítulo que trata dos direitos fundamentais. Assim, esse crime possui um colorido constitucional traduzido na inafiançabilidade, imprescritibilidade e pena privativa de liberdade na modalidade reclusão.

A fundamentação para o constituinte tratar do crime de racismo, no texto constitucional, vai ao encontro de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a saber: promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação — art. 3º, inciso IV; como também do princípio da dignidade humana — art. 1º, inciso III, e da igualdade, estampado, na cabeça do art. 5º.

O legislador obedeceu ao comando constitucional e, assim, em 1989, produziu a Lei 7.716, fazendo constar nela as condutas que caracterizam os atos de racismo, que serão imprescritíveis, inafiançáveis e punidos com reclusão. Percebe-se um rigor na punição contra os crimes de racismo, o que tem impossibilitado, infelizmente, no caso concreto, a punição do agente com base na Lei supracitada.

Quando se fala em imprescritibilidade, deve-se, primeiramente, entender o que é prescrição. Trata-se de um limite temporal imposto ao Estado para exercer o seu poder punitivo. Em regra, todos os crimes prescrevem, independentemente da sua gravidade. Entretanto, encontra-se a imprescritibilidade, como exceção, exposta na Constituição Federal, referente a dois crimes, sendo um deles o racismo. Dessa forma, o agente que cometer esse crime poderá ser punido a qualquer tempo, não ficando sob o jugo dos prazos prescricionais previsto no Código Penal.

Para tratar da inafiançabilidade, é necessário tratar da sua antítese: afiançabilidade. Trata-se de um instituto processual que permite o agente responder um processo penal em liberdade. Para tanto, é necessário que o acusado pague um valor, denominado fiança, que será arbitrado pelo Juiz ou Delegado de Polícia (somente quando as infrações penais tiverem pena privativa de liberdade não superiores a 04 anos).

No caso do crime de racismo, o pagamento da fiança não será possível diante do comando constitucional da inafiançabilidade. Dessa forma, diante de uma prisão em flagrante ou da prisão preventiva, não será concedida a liberdade provisória ao agente. Isso significa que ele ficará encarcerado durante a tramitação do processo penal.

Na prática, as condutas de discriminação, que agridem indivíduos ou grupos, definidoras do crime de racismo, são enquadradas no art. 140, § 3º, do CP — que trata do crime injúria racial. O agente responderá penalmente sem a carga constitucional da imprescritibilidade e da inafiançabilidade. Já a pena é a mesma: privativa de liberdade na modalidade reclusão de 01 a 03 anos e multa.

Além disso, a ação penal, que é o direito que o cidadão possui de solicitar ao Estado a reparação do direito agredido, é diferente. A injúria racial necessita de autorização do ofendido para que se instale o Inquérito Policial e a Ação Penal apresentada pelo Ministério Público ao Juízo. Trata-se do instituto representação. Essa ação é denominada ação penal pública condicionada à representação.

Isso não se aplica aos crimes de racismo, os quais são investigados pela Polícia Civil e a Ação Penal apresentada pelo Ministério Público ao Juízo sem a autorização do ofendido. Trata-se da ação penal pública incondicionada. Sendo assim, a investigação e atuação do Ministério Público ocorrerão sem a manifestação de vontade, bastando, apenas, a prática do crime.

Quando se trata de ação penal condicionada à representação, a que se destina à apuração do crime injúria racial, o ofendido possui um prazo de 06 meses, a contar do conhecimento da autoria do delito, para apresentar a representação/autorização ao Delegado e/ou ao Ministério Público. Caso ele não observe esse prazo, perde o direito à reparação do seu direito que foi violado. Tal situação não ocorre com a ação penal pública incondicionada.

Voltando ao caso da discriminação do motoboy, verifica-se, por meio de uma reportagem divulgada no site https://www.bol.uol.com.br/noticias/2020/08/10/policia-abre-inquerito-para-investigar-injuria-racial-contra-motoboy.htm: Policial abre inquérito para investigar injúria racial contra motoboy, que o ofensor responderá em liberdade por injúria racial. Isso significa que a Polícia Civil investigará a conduta do agente como crime injúria racial, aquele que não possui a mesma carga rigorosa de punição, nos termos da Constituição Federal, que o crime de racismo[iv].

Assim, ficará em liberdade durante a tramitação do processo, como também poderá ser beneficiado pela prescrição, se o Estado não fizer o seu dever de casa: investigar, processar, julgar e executar a pena dentro do lapso temporal previsto na legislação penal. Se a prescrição ocorrer, o agente terá a sua punibilidade extinta.

Apesar de o doutrinador de Direito Penal, Guilherme Nucci[v], tratar a injúria racial como uma espécie de racismo, o legislador não fez isso, haja vista não a colocar na Lei 7.716/1989. Esse tipo penal foi criado pela Lei 9.459/1997, responsável pela alteração da Lei 7.716/1989 e do Código Penal, em 1997. Se a Lei mencionada modificou a Lei contra o racismo, por que não colocou a injúria racial em seu texto? A resposta jurídica é simples: política criminal.

E o que é política criminal? É a ciência que escolhe os direitos que devem ser protegidos pelo Direito Penal e as estratégias para desenvolver a atividade de proteção. A sua função é guiar as decisões tomadas pelo poder político no que tange ao fenômeno criminal[vi]. Diante disso, cabe ao poder político discriminar quais bens jurídicos, ou seja, direitos, que devem ser protegidos penalmente.

A partir desse conceito, infere-se que o legislador, ao editar a Lei 9.459/1997, definiu a injúria racial como um crime sem a carga constitucional do crime de racismo para proteger uma determinada camada da sociedade brasileira. Esse agir coaduna com a tese dos penalistas Zaffaroni e Pierangeli de que há uma relação íntima entre a política criminal e as ideologias políticas[vii].

Diante dessas informações, fica evidente que os crimes de racismos possuem uma carga de punição muita mais severa que o crime injúria racial. Isso tem promovido o redirecionamento da tipificação da conduta, prevista no art. 20, da Lei 7.716/1989, para o art. 140, § 3º, do CP, beneficiando o autor do delito, o qual, muitas vezes, é aquele que aceita as construções ideológicas e programas políticos que visem à dominação de uma parcela da sociedade sobre outra, consoante o entendimento da sociologia moderna[viii].

Autora: Luciene Francisca de Souza Jesus

Mestre em Direito Público. Especializada em Direito Penal e Processo Penal. Especializanda em Direito Previdenciário e Direito Tributário. Graduada em Direito e em Biblioteconomia. Professora Universitária e Advogada.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BATISTA, N. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 34–39.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus. Publicação de livros: antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência Constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. HC n. 82.424-RS, Siegfried Ellwanger e Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Moreira Alves. DJ, 19.mar.2004. Disponível: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79052. Acesso em: 12/08/2020.

LAURIA, Mariano Paganini. Preconceito de raça ou de cor; Lei n° 7.716/1989. In: CUNHA, R. S., PINTO, R. B. SOUZA, R. (Org.). Leis penas especiais comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 417–474.

NUCCI, Guilherme. Só quem nunca sofreu racismo na vida que pensa que isso é mera injúria. Disponível: https://www.conjur.com.br/2015-out-27/guilherme-nucci-quem-nunca-sofreu-racismo-acha-isso-injuria. Acesso em: 11/08/2020.

PODER 360. Homem ofende motoboy com xingamentos racistas. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=WlJjOPXxHxg. Acesso em: 09/08/2020.

ROXIN, C., GUNTHER A., TIEDEMANN, K. Introdução ao direito penal e ao direito processual penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 129–134.Disponível

SOUZA, F. Policial abre inquérito para investigar injúria racial contra motoboy. Disponível: https://www.bol.uol.com.br/noticias/2020/08/10/policia-abre-inquerito-para-investigar-injuria-racial-contra-motoboy.htm. Acesso em: 11/08/2020.

ZAFFARONI, E. R., PIERANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 118–120. v. 1.

[i] Mestre em Direito Público. Graduada em Direito e em Biblioteconomia. Especializada em Direito e Processo Penal. Especializando em Direito Previdenciário e Tributário. Professora Universitária e Advogada.

[ii] PODER 360. Homem ofende motoboy com xingamentos racistas. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=WlJjOPXxHxg. Acesso em: 09/08/2020.

[iii] STF: HC 82.424/RS — diz respeito ao caso Ellwanger, em que o STF discutiu que o conceito de racismo foi construído socialmente. Siegfried Ellwanger Castar, escritor gaúcho e proprietário de uma editora denominada Revisão Editora Ltda, situada em Porto Alegre/RS, publicou obras suas e de terceiros, pretensamente científicas, adotando a linha conhecida como “revisionismo”, a fim de apresentar um nova versão acerca do Holocausto, perpetrado pelo governo nacional-socialista alemão (partido nazista)e que culminou no extermínio de aproximadamente seis milhões de judeus. Tal autor qualificou o Holocausto como a “mentira do século”, negando a sua existência, bem como difundindo ideários e imprecações antissemitas — LAURIA, Mariano Paganini. Preconceito de raça ou de cor; Lei n° 7.716/1989. In: CUNHA, R. S., PINTO, R. B. SOUZA, R. (Org.). Leis penas especiais comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 426.

[iv] SOUZA, F. Policial abre inquérito para investigar injúria racial contra motoboy. Disponível: https://www.bol.uol.com.br/noticias/2020/08/10/policia-abre-inquerito-para-investigar-injuria-racial-contra-motoboy.htm. Acesso em: 11/08/2020.

[v] NUCCI, Guilherme. Só quem nunca sofreu racismo na vida que pensa que isso é mera injúria. Disponível: https://www.conjur.com.br/2015-out-27/guilherme-nucci-quem-nunca-sofreu-racismo-acha-isso-injuria. Acesso em: 11/08/2020.

[vi] ZAFFARONI, E. R., PIERANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 118–120. v.1

[vii] Ibidem. p. 120.

[viii] STF: HC 82.424/RS.

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