Algumas considerações sobre o crime de estupro

idvogadosofc
idvogadosofc
Published in
6 min readSep 12, 2020

--

Estupro é um crime tipificado no Código Penal, com a proposta de proteger pessoas de ambos os sexos e de todas as idades contra ofensa à liberdade sexual. A sanção, ou seja, a pena, foi definida pelo legislador a partir da idade e das características da vítima. Além disso, o legislador, a partir da Lei n° 12.015/2009 [ii], considerou todas as formas do estupro como crime hediondo [iii].

Quando se fala em crime hediondo, pensa-se naqueles que causam uma grande indignação social, sendo, portanto, merecedor de uma reprimenda penal maior. Além desse sentimento social, enxerga-se, na Constituição Federal, uma limitação de benefícios aos agentes que cometem esse crime repugnante, que são: inafiançabilidade, não possibilidade de pagamento de fiança para responder o processo penal em liberdade; e insuscetibilidade de graça ou anistia, que são formas de perdão concedido pelo Estado ao agente que cometeu o crime [iv].

Além dessa limitação constitucional, o legislador infraconstitucional determinou a obrigatoriedade do início do cumprimento da pena ocorrer no regime fechado [v] e a necessidade de cumprimento de percentual maior de pena para a progressão de regime prisional. Quanto ao livramento condicional, além de o percentual de fração de cumprimento de pena ser maior do que os dos crimes não hediondos, se do estupro resultar morte da vítima, o condenado não terá direito a cumprir a sua pena em liberdade condicionada [vi].

Em relação ao quantum das penas, elas variam de 6 a 30 anos, dependendo da forma como ele foi cometido. Leva-se, inclusive, em consideração se dele resultar morte da vítima [vii]. Então, a pessoa que cometer esse crime receberá uma punição com uma carga constitucional e infraconstitucional bem rigorosa. Apesar de o ordenamento jurídico tratar o estupro com rigidez, punir o agente que comete esse delito, na prática, não é tarefa fácil.

Esse crime é marcado pela fraqueza das provas. Muitas vezes, somente a vítima é a testemunha. Esse depoimento é tido como inverossímil. Sendo ela criança ou adolescente, os abusos sexuais, sem a penetração, são mais difíceis de serem provados. A fala dessas vítimas, muitas vezes, não é levada a sério. Isso contribui para que o estuprador continue cometendo esse delito sórdido com a mesma vítima ou fazendo novas vítimas.

Outro fator que contribui para que o agente não seja punido é a desqualificação da vítima, que a maioria é uma pessoa do sexo feminino. A criança, a adolescente ou a mulher são tidas como culpadas pelo fato de terem sido estupradas. Trata-se da cultura da culpabilização da vítima que tem como sustentáculo uma sociedade patriarcal, uma sociedade machista, que inferioriza e desenvolve uma visão estereotipada da mulher.

Dessa forma, a roupa que a vítima veste, o modo de se expressar, os locais que frequenta, etc. fazem dela responsável por ter sido agredida sexualmente. Diante disso, a vítima prefere ficar em silêncio, não denunciando o agente e, assim, proteger-se dos comentários, dos olhares, das críticas de todos que estejam em seu caminho pela busca da reparação jurídica da violação sofrida.

Nesse cenário de desprezo pela vítima, há a presença do Estado que lhe nega o devido processo legal para apuração da responsabilidade penal. Da investigação criminal ao processo penal, a vítima é tratada como ré. Esse quadro impede que muitas vítimas procurem o Estado para realizar uma ocorrência, denominada notícia crime, essencial para o início da investigação.

Para piorar a situação da vítima, há a gravidez como resultado desse crime abjeto. Nesse caso, é possível a realização do aborto. Trata-se de uma das duas hipóteses legais em que o aborto é descriminalizado [ix]. Todavia, a realização dele torna-se um martírio para a vítima, pois os médicos exigem autorização judicial. Esse agir faz com que a vítima, desnecessariamente, procure o Poder Judiciário em busca dessa autorização para realizar o aborto. Como a decisão é sempre prolatada tardiamente, não é mais possível interromper a gravidez.

A possibilidade da realização do aborto quando a gravidez resulta de estupro está prevista no art. 128, inciso II, do CP. Esse dispositivo exige apenas o consentimento da vítima. Nele, não está positivada a necessidade de autorização judicial. Se o legislador, por meio de uma política criminal, entendeu que, nesse caso, o aborto possui uma carga de descriminalização, não há necessidade de atuação do Estado-Juiz.

A não realização do aborto nesse caso, quando há o consentimento da vítima, expõe-lhe a mais constrangimentos, além do estupro. Assim, ela é obrigada a dar continuidade à gravidez, o que lhe traz mais abalos psicológicos. Parece que entender o mal que uma gravidez oriunda de estupro provoca na vítima é algo difícil de ser assimilado pelo Estado brasileiro e sua sociedade.

Esse comportamento corrobora com a tese da culpabilização da vítima. Como o estupro é de responsabilidade dela, as consequências dele deverão ser suportadas por ela. Caso ela levante a bandeira pela realização do aborto, será execrada pelo povo com aval do Estado. Isso foi notório, recentemente, no caso de uma menor, do Estado do Espírito Santo, que sendo estuprada por vários anos, por seu tio, teve como desfecho uma gravidez, e foi atacada por parte da teia social.

Para que a gravidez fosse interrompida, ela necessitou de autorização judicial, a qual se foi deferida para simplesmente autorizar o procedimento, contrariou a previsão legal. Além disso, a criança foi exposta a agressões de várias formas diante da decisão pelo aborto, nas redes sociais, que foi concedida pelo seu representante legal, pelo fato de ser incapaz.

Nas reportagens veiculadas, no que tange à discordância de segmentos da sociedade acerca do aborto, não havia pedidos ao Estado para que punisse o agente que cometeu o estupro. A preocupação das pessoas concentrava-se em proteger a vida intrauterina em detrimento da vida da criança de 10 anos que foi violentada por vários anos. Isso demonstra o quanto a sociedade brasileira acredita que a vítima é culpada por ter sido estuprada.

Essa situação poderá ser agravada, pois há duas PEC [x], de números 181/2015 e 29/2015, tramitando no Congresso Nacional, com a proposta de definir o marco de proteção à vida desde o início da concepção. Caso seja aprovada, tem-se um precedente para a proibição do aborto nos casos, legalmente, permitidos, incluindo a gravidez provocada por estupro.

O tema de estupro precisa ser debatido pela sociedade. Essa discussão deve tratar de questões dicotômicas: a vítima e o agente. Ambos precisam de tratamento. Quanto ao agente, é preciso investigar qual a motivação para o cometimento do delito. A partir das teses identificadas, será possível definir um tratamento, que envolva profissionais da saúde em várias especialidades, juntamente com cumprimento da pena. Isso é para impedir que ele faça novas vítimas.

Se o Estado deixar de negligenciar esse mote, a cultura do estupro poderá ter um fim. Esse é o momento para impedir que as PEC supracitadas sejam aprovadas, pois representam um retrocesso. O que elas farão é legitimar o estupro, mesmo que reflexamente, ofendendo o bem jurídico denominado dignidade sexual.

As mulheres, que são as maiores vítimas desse crime horrendo, independentemente de suas idades e de suas características, querem sentir-se seguras em qualquer espaço em que transitam e, nele, experimentar a brisa da liberdade e do respeito as suas atitudes. Portanto, chegou o momento de gritar: NÃO À CULTURA DO ESTUPRO.

Autora: Luciene Francisca de Souza Jesus

Mestre em Direito Público. Especializada em Direito Penal e Processo Penal. Especializanda em Direito Previdenciário e Direito Tributário. Graduada em Direito e em Biblioteconomia. Professora Universitária e Advogada.

Notas:

[i] Mestre em Direito Público. Graduada em Direito e em Biblioteconomia. Especializada em Direito e Processo Penal. Especializanda em Direito Previdenciário e Tributário. Professora Universitária e Advogada.

[ii] Lei n° 12.015/2009 — lei que alterou o CP no que toca os crimes contra a dignidade sexual.

[iii] Art. 1º, V e VI, da Lei n° 8.072/1990.

[iv] Art. 5º, XLIII, da CF/1988.

[v] Art. 2º, § 1º, da Lei n° 8.072/1990.

[vi] Art. 112, Vi, VII e VIII, da Lei n° 7.210/1984.

[vii] Arts. 213, §§ 1º e 2º; 217-A, §§ 3º e 4º do CP.

[ix] Art. 128, II, do CP.

[x] PEC — Proposta de Emenda Constitucional.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

______. Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-lei/Del2848compilado.htm.

______. Lei n° 7.210/1984, de 11 de julho de 1984. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm.

______. Lei n° 8.072/1990, de 25 de julho de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8072.htm.

­______. Lei n° 12.015, de 7 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12015.htm.

CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista. Crime hediondo. In: CUNHA, Rogério Sanches, PINTO, Ronaldo Batista, SOUZA, Renee do Ó. Leis penais especiais comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. P. 572–605.

--

--

idvogadosofc
idvogadosofc

Muito além de aplicativos, lutando por direitos.