Programa de Trainee da Magalu

idvogadosofc
idvogadosofc
Published in
6 min readNov 2, 2020

--

O programa de trainee para negros da Magazine Luiza causou um reboliço na sociedade. Parece que o segmento contrário a essa ação está insatisfeito devido ao fato de não ter mais os negros limpando a suas privadas, cuidando de seus filhos, cozinhando os seus pratos saborosos, lavando as roupas sujas, ou seja, estando sob o seu jugo. Tal segmento levantou a bandeira do racismo, ofensa ao princípio da igualdade, pois excluiu os brancos pobres. Até a Defensoria Pública da União ajuizou uma Ação Civil Pública expressando a inconstitucionalidade desse programa.

Este artigo tem como proposta analisar a constitucionalidade do Programa de Trainee para negros da Maganize Luiza. Eu, sendo mulher, negra (tenho muito orgulho de pertencer a essa etnia que foi degradada, violentada, por vários Estados soberanos, e resistiu), advogada, professora universitária, sinto-me no direito de escrever sobre isso, pois chegar aqui foi uma tarefa difícil. Caso o Estado brasileiro e a iniciativa privada tivessem adotados medidas, como a que estamos discutindo, neste momento, no século passado, a minha caminhada e a de muitos negros seriam diferentes e, assim, não teríamos lavado tantas privadas dos brancos. Hoje, o mercado de trabalho, as universidades, os espaços públicos estariam coloridos.

Como mencionado acima, um segmento da sociedade brasileira questionou a constitucionalidade desse programa, alegando possuir um caráter racista. Já outro, ao qual me filio, levanta a bandeira da promoção da igualdade material, da justiça social. Esse debate é salutar em uma democracia. Portanto, a atitude da Magalu fez com que uma discussão sobre o racismo ocupasse um espaço na pauta social e política do Brasil.

Fiquei pensando sobre o motivo que levou a Magalu fazer isso. Ela poderia, simplesmente, ter tornado público o seu programa de trainee sem evidenciar que estava direcionado aos negros. No momento da escolha, optaria por eles, como ocorre com os programas de trainee de outras empresas, que não mencionam para quem se dirige e escolhem sempre os brancos (se essa tese fosse falsa, os postos de gerência das empresas teriam negros na mesma proporção que os brancos). Isso não causaria celeuma. Todavia, não provocaria uma discussão como a atual acerca da exclusão social dos negros ou da sua antítese, que caracteriza um racismo estrutural.

Falar sobre racismo estrutural, tem-se que abordar a escravidão no Brasil. Falar em escravidão é acessar a história brasileira, que está marcada pela ausência do Estado no que tange a sua responsabilidade social por esse grupo de pessoas. Negros foram sequestrados para se transformarem em propriedades para aqueles que possuíam o capital, representado pela terra. Negros perderam identidade, laço afetivo, vida, ou seja, dignidade humana, para satisfazer interesses públicos e privados.

Um belo dia, a Princesa Isabel, dotada de uma extrema compaixão, acordou, sem mais nem menos, antiescravagista e, assim, resolveu conceder aos negros, ora escravos de sua Coroa, o habeas corpus. Assinar a Lei Áurea, aquela que colocou um ponto final na escravidão da época, mas iniciou outra, reflexo da primeira, fez dela uma humanista. Entretanto, esse agir é questionado por muitos historiadores e por mim. Como uma Princesa, herdeira do trono do Império, adota uma postura isolada favorável aos negros?

Como não há registro, na história brasileira, de que a referida Princesa participou de lutas abolicionistas, infiro que a sua atuação está ligada aos interesses da imperialista Inglaterra, que almejava criar mercado consumidor além-mar para vender bugigangas, frutos de sua revolução industrial. No Brasil, a formação desse mercado ocorreu com a abolição, por meio da mão de obra assalariada dos imigrantes europeus, que substituiu os negros nas atividades laborativas. A partir desse momento, os negros tornaram-se imprestáveis para o Estado brasileiro, sendo, portanto, jogados na sarjeta. Os imigrantes brancos, além de favorecerem a invisibilidade dos negros, auxiliaram na política estatal de branqueamento da população brasileira.

Insta evidenciar que os negros foram arrancados de sua terra, com muita violência, para serem coisa em um solo desconhecido. Aqui, somente agruras encontraram. Foram dilapidados, destruídos, desumanizados, coisificados, reificados. Esse cenário foi combatido por eles. Resistir contra essa arbitrariedade foi o hino desse povo forte, que era tido pelo governo e proprietários de terras como preguiçosos. Até a igreja católica participou do processo de destruição do negro quando sustentou que não possuía alma. Não possuir esse atributo foi uma dádiva para aqueles que o tinham como propriedade. Esses ataques não impediram que o negro se mantivesse firme em sua luta pela sua liberdade.

A liberdade, jogada na cara dos negros, pela abolição, não cumpriu o seu papel. Até os abolicionistas, os favoráveis à abolição, viraram-lhes as costas quando a alforria foi decretada. Assim, a nova trajetória, agora como pessoa, foi marcada pela falta de direitos: ao trabalho, à moradia, à terra, à educação, à saúde, à alimentação, à liberdade, à igualdade, à liberdade de consciência e crença e ao livre exercício de culto religioso. O Estado os segregou a uma escravidão não legalizada. As relações sociais desenvolvidas, a partir de então, foram marcadas estruturalmente por um racismo, o qual impedia que os negros transitassem como os brancos na teia social.

Em pleno Século XXI, o Brasil continua distante de ser civilizado. Esse termo afina-se com o fato de ele, ainda, não investir em seu capital humano, o que tem provocado a exclusão de vários segmentos da sociedade ao acesso a bens jurídicos. Os negros, constituídos por pretos e pardos, formadores da maioria do povo brasileiro, fazem parte do universo da exclusão. Dessa forma, cientes de que há várias demandas sociais que exigem a presença do Estado brasileiro, os negros, por meio de manifestações políticas, reclamam do Estado e da sociedade o seu espaço como um ator político e social.

Em nome do princípio da igualdade, já que foi a ofensa a ele a fundamentação da inconstitucionalidade dos contrários ao programa de trainee da Magalu, é necessário analisar se essa ação coaduna com as normas constitucionais, supralegais e legais. Sendo uma empresa privada, está regida constitucionalmente pelos princípios, dentre outros, da promoção da dignidade humana; igualdade material; valor social do trabalho e da livre iniciativa; justiça social; função social da propriedade; redução das desigualdades sociais e regionais; busca do pleno emprego.

No âmbito supralegal, há a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, da qual o Brasil é signatário. Nela, há a norma de que não serão consideradas discriminação racial medidas tomadas com o um único objetivo de assegurar o progresso adequado a certos grupos raciais ou étnicos o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais.

Quanto ao campo legal, o Estatuto da Igualdade Racial cumpre o papel de definir vários termos relacionados à discriminação racial contra os negros e as políticas públicas que devem ser implementadas pelo Estado brasileiro para a inclusão social dessa etnia. Além disso, evidencia o papel da sociedade e da iniciativa privada no combate ao racismo estrutural vigente no Brasil.

Diante dos dados acima, concluo que a conduta da Magalu, ao apresentar à sociedade um Programa de Trainee para negros, é constitucional, supralegal e legal. É de responsabilidade de todos o combate ao racismo estrutural, mesmo o senso comum defender a democracia racial. Os fatos históricos, alguns narrados neste artigo, demonstram que a etnia negra sempre foi desconsiderada pelo Estado, com a participação da sociedade, provocando a sua exclusão social.

Então, o que se verifica, por meio da atitude da Magalu, é a inclusão social desse grupo, atendendo a uma reclamação dos negros. Neste momento, há mão de obra negra qualificada, mão de obra universitária, resultado da ação afirmativa das cotas raciais, que deve e merece ser absorvida pelo mercado de trabalho. Essa é a oportunidade de dar continuidade ao processo de inclusão iniciada pela política supracitada. Espero que outras empresas adotem esse comportamento. Dessa forma, os brancos não se assustarão quando encontrarem negros ocupando os espaços públicos.

Notas:

[i] Mestre em Direito Público. Graduada em Direito e em Biblioteconomia. Especializada em Direito e Processo Penal. Especializanda em Direito Previdenciário e Tributário. Professora Universitária e Advogada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

­­______. Decreto n° 65.810, de 10 de dezembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D65810.html.

­­­______. Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm.

MACIEL, Rui. Novo programa de trainee da Magalu aceitará apenas candidatos negros. Disponível em: Novo programa de trainee da Magalu aceitará apenas candidatos negros — Canaltech

--

--

idvogadosofc
idvogadosofc

Muito além de aplicativos, lutando por direitos.