O que o Alzheimer me ensinou sobre a Vida

Qual é a única perda que não toleramos?

Igor Saraiva
Igor Saraiva

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Tem sido difícil lidar com a perda de memória do meu pai. Vicente é um cearense carinhoso e baixinho, com menos de 1,50m. Um marido exemplar e um pai atencioso. Homem de sorriso fácil, ativo até os 80 e cacetada. Inteligentíssimo e extremamente espiritualizado, mas que agora não pode compartilhar sua experiência de vida por causa daquela doença de nome alemão.

Ele meio que precisa de cuidados tipo uma criança. A diferença está que a criança vai aprendendo com o tempo. Ele, desaprendendo.

- Ao menos ele não sofre — suspira e se contenta Biluca, apelido de solteiro que gosto de chamar a minha mãe. Mas nos sentimos espectadores impotentes de uma vida que escorre pelas mãos. Quem já teve parente nessa situação entende.

Um dia, eu estava tão melancólico que desci do meu prédio pra espairecer, numa fuga de mim mesmo pra entender tudo isso. Encontrei ao acaso com uma querida amiga da minha mãe, dona Solange. Suas palavras tocaram tão intensamente minha alma, que acredito que ela foi enviada por Deus para conversarmos.

- Já viu como a vida é sábia, Igor? Aos poucos ela vai nos tirando item por item — disse dona Solange com roupa de academia suada mas com o penteado ainda impecável.

Cocei a cabeça com ar de não-entendi.

Ela continuou:
- A gente vai perdendo o cabelo, os dentes, a visão. Tudo vai indo embora até que não nos sobra mais nada. A vida é assim: é Deus nos ensinando que não levaremos nada daqui quando formos embora.

Na hora lembrei daquela frase do Barão de Itararé: “O que se leva dessa vida é a vida que se leva”.

Mas como encarar essa capacidade de desapego, do ‘Let It Go’ com paz de espírito, inclusive das pessoas que amamos?

Mas essa doença em que se perde a memória me fez pensar sobre a vida que se ganha de uma maneira inusitada!

A EVOLUÇÃO DA PERDA

Meu baixinho (como chamo meu pai) tem perdido cada coisa no seu devido tempo. Primeiro foram alguns nomes, mas isso não o deixava irritado já que ele adorava dar apelidos para as pessoas, como a famosa Maria-Espingarda ou o Zé do Bode. Daí ele perdeu a lembrança de algumas palavras, isso sim fazia ele ficar furioso, pois era fluente em Latim. Então ele foi perdendo o paladar e não sentia bem o gosto das comidas. Depois passou a não ouvir bem, mas minha mãe dizia que ele tinha audição seletiva e só ouvia quando tinha interesse. Em seguida foram as memórias recentes, tipo o que ele almoçou hoje. Depois ele perdeu a performance na informática: “O que é esse tal de arquivo? E essa pasta, meu filho, serve pra quê mesmo? Será que o arquivo que eu não salvei está na lixeira? Windows e Word são a mesma coisa?”

Mais adiante, perdeu a memória do seu passado distante, como sua infância. Os dentes, a gente não percebe porque tem sempre aquele belo implante. O cabelo ele ainda mantém. Mas hoje em dia ele perdeu a capacidade de formar frases com sentido semântico. Agora anda perdendo as forças, os músculos e a vontade de comer.

- É duro lidar com isso, Igor?
- Não — retruco e continuo.
- É belo.

Tem momentos que meu pai não sabe o nome da minha mãe. E às vezes confunde ela, meu irmão e a mim com outras pessoas. Ele pode não saber quem somos, mas vem em nossa direção com muito carinho, nos dá um beijo afetuoso na testa e termina com um abraço, repousando sua cabeça em nossos peitos, como que se aninhasse para ouvir nossos corações.

- Como pode uma pessoa não lembrar quem somos e ao mesmo tempo continuar nos amando? — indago a Deus.

O QUE SOBRA APÓS A PERDA?

O que eu aprendi é que quando tudo se vai, o que fica é o Amor. Podemos perder tudo, mas existe algo que jamais se esgota, jamais diminui, jamais se apaga.

Quando o corpo enfraquece, a energia abaixa, o racional fica confuso e o emocional fragilizado, emerge nossa essência que é a de querer o bem aos outros de forma despretensiosa.

Quem faz meditação sabe a tremenda vontade de abraçar alguém quando terminamos um período de olhar introspectivo no silêncio da mente. Assim como a meditação, o envelhecer me fez perceber que todos nós perderemos as coisas aos poucos para, no final, sobrar apenas o Amor.

Entretanto, a vida é uma soma de experiências que carregamos sempre conosco. Assim como uma montanha, fomos adicionando camadas e camadas e esse amor ficou lá embaixo, bem no fundo.

Já parou para pensar que quando uma pessoa querida morre, lembramos o quanto a gente a amava? Pois é, o amor sempre aparece em vazios, não é mesmo?

MAIS DO QUE TUDO, MENOS!

Portanto, vivamos uma vida com menos. Menos preocupações, menos ideias fixas, menos posses, menos trabalho. Vivamos com menos apego, menos bens, menos intransigência e intolerância. Vivamos com menos desejos, que levará a menos sofrimentos e menos gastos. Menos expectativas e menos frufrus.

Desta vida, não levaremos nada.

Então vivamos o hoje intensamente e de forma inexplorada.

Que a gente distribua um sorriso para um morador de rua (pode ser duro, porque vai te fazer trocar olhares com ele e nem todo mundo está acostumado). Um aplauso inesperado para seu colega de trabalho, um bilhete-elogio para uma desconhecida, um abraço demorado na sua secretária do lar, uma pizza que não seja sobra para o seu porteiro.

Vivamos o ‘não importa se isso der errado’, vivamos o ‘vai virar história boa pra se contar’, vivamos o ‘eu já te disse que te amo hoje escrito com tinta guache no parabrisa’.

Vivamos com a sabedoria incomparável da minha querida amiga Carol Teixeira, que disse a seguinte frase sobre a recente perda da sua mãe: “Ela não guardava a vida para dias de festa”.

Que percamos tudo.
Só não percamos tempo.

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Igor Saraiva
Igor Saraiva

Design Director na Fjord Brasil (Accenture). Palestrante de Futurismo e Inovação. Desenha & Escreve pra explicar pra si mesmo.