O que você fez enquanto você ia?
Quanto sofrimento você seria capaz de receber para minimizar o sofrimento de um estranho?
Dizem que não importa onde você esteve, mas sim o que aconteceu enquanto você ia.
Pois bem, essa foi uma viagem que começou com o convite de um amigo de infância, o Carlos Frederico Macedo Coelho.
A ideia era caminhar +70km em 5 dias até chegarmos a Machu Picchu. Nosso grupo tinha 11 pessoas, de 4 países diferentes.
No segundo dia, a mais jovem do nosso grupo, uma alemã de uns 18 anos teve piriri por mal de altitude, o tal do ‘Soroche’ peruano.
Imagine-se na seguinte situação:
“Você no cenário aí da foto, acordando as 4:50am, caminhando por 8 a 10 horas por dia com quase 10 Kg de mochila nas costas, passando frio e sem conseguir respirar direito devido a altitude de 3 a 4 mil metros acima do mar, só com pedras e mato ao redor, com um grupo de desconhecidos, sem tomar banho e com medo de se alimentar porque a cada 10 min você tem que procurar uma pedra para se esconder e ir ao banheiro.”
Agora lembre-se que quando estamos de piriri, temos aquele mau estar e mau humor irracionais… Então adicione o desconforto, a raiva e a fraqueza física.
Coitada. Segundo sua amiga, essa menina tinha planejado e sonhado com essa viagem por 6 meses. E agora se cobrava, se sentindo responsável por atrasar a velocidade do grupo todo.
De tão fraca que estava, teve que fazer 1 dia inteiro do trekking em cima de um cavalo de carga.
Agora, imagine você com piriri e chacoalhando em cima de um cavalo e com o toba assado???
Foda, né?
No dia seguinte, tivemos que andar a pé porque os cavalos não podiam mais seguir conosco. Resolvi ir conversando com ela, para que o tempo passasse mais rápido enquanto eu tentava uma ou outra palavra de consolo.
Conversamos por 20min, e ela teve que fazer umas 4 ‘paradas’ não planejadas. Nesse momento, percebi que um dos nossos guias levava a mochila dela além da sua própria.
Me ofereci para carregar e a resposta foi:
“Puxa Igor, muito obrigado. Porque na minha mochila tem o cilindro de oxigênio e carregar ambas fica pesado para mim”.
Magina! — respondi em español ;-)
Coloquei a mochila dela por cima da minha e seguimos caminhada e conversa. A cada 10 ou 15 minutos, uma paradinha. De vez em quando eu tirava os 20 Kg das costas e descansava um pouco.
E foi assim por quase 6 horas montanha abaixo. Meus queridos amigos Fred e Bia se ofereceram para revezar a mochila comigo, mas além de me sentir bem, imaginei que pudesse ser pesado demais para eles.
Foi durante o caminho que eu lembrei de ter falado sobre a {Polaridade da Vida}
“Apesar de ruim, a vida é boa não é?”
Ela fez cara de WTF, então continuei:
“Mesmo você se sentindo mal física e emocionalmente, a vida te presenteia com belas paisagens, solzão, cores incríveis, canto dos pássaros e ar puro. Isso é sensacional. Essa polaridade vai acontecer sempre durante toda a sua vida. Chatear-se ou não, vai ser uma escolha que dependerá unicamente de você."
A testa da alemã continuava franzida. Então fiz questão de continuar…
"Por exemplo: talvez você deseje entrar numa universidade, mas não vai ter nota o suficiente. Ou talvez aquele garoto que você gosta vai se interessar por outra menina. Ou talvez seu chefe não vai te dar o aumento que você acha que merece. Sentir-se mal é uma reação naturalmente humana. Mas sofrer é um mau hábito psicológico que desenvolvemos sem darmos conta. Sabe, eu sei que não posso curar seu piriri, mas eu sei como te fazer se sentir melhor: olhe em volta e apenas observe."
Parei de caminhar. Ela parou. Pedi que ela parasse de respirar por alguns momentos, pois nossa respiração ofegante desconcentrava a mente de apreciar a beleza da paisagem.
"Foco. Eis o segredo do sofrimento. Todos nós vamos ter sempre problemas, não importa o tamanho nem a quantidade, sempre teremos problemas. O foco é onde escolhemos mirar nossa atenção e, portanto, nossa energia. Sei que tem algo que te incomoda sem parar, que é a sua barriga. Mas ao mesmo tempo, tem algo que te encanta constantemente: essa paisagem. Basta que você mude o foco. Estou te pedindo para olhar envolta APESAR do mau-estar. Entende? Eu sei que é difícil, mas esse é um bom exercício pra se levar pra vida toda. Se eu soubesse disso na sua idade, as coisas teriam sido muito mais fáceis pra mim, acredite. E você só vai ficar boa nisso se praticar o FOCO sempre."
E a conversa continuou nesse tom por quase 2 horas das 6 horas que faltavam para chegar ao acampamento.
De repente, ficamos no breu-breu-breu mesmo, só com as luzes das lanternas iluminando a trilha da montanha. O resto do grupo seguiu com o passo rápido e já devia ter chegado no acampamento. Restaram para trás apenas os 2 guias, a menina alemã que estava passando mal, sua amiga e eu.
Quando chegamos no camping, ela se sentou no chão no meio das barracas e chorou. Chorou enquanto tirava as botas e os casacos. Chorou de alívio. Chorou de vitória. Chorou o choro que veio segurando por KMs. Chorou por ter conseguido. Chorou por estar viva.
Daí, ela olhou pra mim e me disse:
— Obrigado por ter carregado a mochila de uma estranha por tanto tempo. Sei que ficou pesado e não foi fácil. Obrigado também pela companhia, por ter me esperado e pela conversa. Não sei como posso retribuir, Igor.
Respondi:
— Faça uma boa ação para qualquer desconhecido. Não vale retribuir pra mim. Faça por uma pessoa que você não pode esperar nada em troca. E se conseguir, explique o Segredo do Sofrimento.
Uns fizeram trilha. Eu tentei transformar um momento difícil de alguém em uma boa memória.
E você, pensa no que você faz enquanto você vai, independente pra onde?