“Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?”

O medo inquietante da descristianização

Lumen ad Viam
Igreja Hoje
Published in
4 min readJul 20, 2016

--

Por Vittorio Messori

Nestes tempos de descristianização e de indubitável crise na Igreja, tanto numérica quanto doutrinal, tem sido muito comum entre os católicos tentar compreender um versículo do Evangelho em nada tranquilizador: “Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?”

Essa questão perturbadora é posta pelo próprio Jesus no Evangelho de Lucas (18,8). Perturbadora para os fiéis, mas, ao menos na aparência, também contraditória. Com efeito, em outras passagens dos Evangelhos, Cristo tranquiliza o seu “pequeno rebanho”, prometendo-lhe que, embora com tribulações, desafiaria os séculos e estaria presente na sua vinda, no fim dos tempos. Podemos mencionar o famoso “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”, profecia encontrada nos três Evangelhos sinóticos.

No capítulo 24 de Mateus, o Nazareno disse, sempre aludindo ao tempo da segunda vinda, sua vinda gloriosa: “Porque com a propagação da iniquidade, o amor de muitos esfriará. Mas aquele que perseverar até o fim será salvo”. Parece até que, no Novo Testamento, aquela que é chamada de “a barca de Pedro” não alcançará o ancoradouro final como um grande galeão de velas desfraldadas, mas, talvez, fique reduzida a uma embarcação simples carregada de gente humilde. Mas, de gente que, embora em minoria, guardará a fé. As “Cartas Apostólicas”, começando com as de Paulo, repetidamente confirmam a resistência da comunidade dos crentes até o fim da história. Por que então a pergunta? Por que o questionamento se o próprio Cristo “encontrará a fé sobre a terra”?

Gerhard Kittel ( 1888–1948). Teólogo protestante alemão.

É necessário, aqui, um esclarecimento decisivo, mas ausente nas notas deste versículo nas Bíblias modernas. O texto grego de Lucas diz “epi tes ghès”, isto é, “na terra”. Consultemos, então, uma ferramenta muito importante: os dezesseis portentosos volumes ​​do Grande Léxico do Novo Testamento, “o Kittel”, como é chamado entre os especialistas, pois foi elaborado por Gerhard Kittel, professor alemão da Universidade de Tübingen. O renomado estudioso bíblico esclarece que o termo “ghé” é sim, às vezes, usado nas Escrituras para indicar Terra, entendida como o mundo, mas, na maioria das vezes, refere-se à terra por excelência, ou seja, a Terra Santa de Israel, a que o Senhor prometeu a Abraão, aquela de que falam com amor e nostalgia Antigo e Novo Testamentos. Aquela de que fala Jesus quando lista as bem-aventuranças, no chamado “Sermão da Montanha”: “Bem-aventurados os puros de coração, porque herdarão a terra” (Mt 5,5). Não se trata da herança de qualquer terra, mas da Santa. Aquela terra da qual Estêvão, o primeiro mártir, falava extasiado ao Sinédrio, no sétimo capítulo dos Atos: “O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, quando ele ainda estava na Mesopotâmia e disse: ‘Sai da tua terra e vai para a terra que irei te indicar’”. Para confirmar a tradição hebraica sobre o significado daquela “terra” onde a fé estaria em risco de extinção, há o contexto da parábola na qual foi inserida a pergunta de Jesus. Trata-se da parábola do juiz iníquo e preguiçoso que não queria fazer justiça à pobre viúva. É a justiça segundo as leis judaicas, sem qualquer referência à futura Igreja de Cristo.

Se é assim, e parece mesmo que é, o versículo relatado por Lucas não é ameaçador para a fé no mundo, mas é preocupante por uma outra razão. De alguma forma, espremida entre israelenses e palestinos, entre judeus e muçulmanos, a comunidade cristã está morrendo no território que era o antigo Israel. Apenas um exemplo, mas significativo: em lugares como Belém e Nazaré, predominantemente cristãos até algumas décadas atrás (onde inclusive os prefeitos eram batizados) a presença de crentes no Evangelho está agora reduzida a uma minoria cada vez mais exígua. Em Jerusalém, a comunidade cristã autóctone, ou seja, oriunda daquela região, está se tornando pouco mais que simbólica. A queda contínua, implacável, agravada pelas guerras e guerrilhas, induz os sobreviventes batizados a emigrarem para a Europa e América.

Situação dolorosa, sem dúvida. De fato, talvez, em seu retorno, Jesus não vai mais encontrar seguidores na terra que foi sua. Mas tranquiliza os cristãos de fora dos limites bíblicos: ainda que atribulados, massacrados, reduzidos a uma minoria, a fé no Evangelho irá resistir até que já não seja mais necessária. Isto é, quando, nas palavras de Paulo, o Cristo retornar e nós já não precisarmos crer, pois o “veremos face a face”.

(Texto publicado no dia 02/07/2016 no jornal italiano Corriere della Sera.)

(Veja também os demais artigos da Coleção Igreja Hoje.)

(Curta a página Vittorio Messori em português.)

--

--