O matrimônio católico

Um caso único nas religiões

Lumen ad Viam
Igreja Hoje
Published in
5 min readSep 30, 2014

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(Publicado no jornal Corriere della Sera no dia 22 de setembro de 2014.)

Por Vittorio Messori

Os católicos estão preocupados com o Sínodo sobre a família, cuja primeira fase vai começar em 5 de outubro de 2014. O nervosismo é porque serão abordadas, prioritariamente, situações “difíceis e irregulares”, como as define o documento preparatório.

Cardeal Walter Kasper
Cardeal Gerhard Ludwig Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé

Neste contexto, vão se confrontar o “possibilismo”, em nome das necessidades pastorais, do Cardeal Walter Kasper, e a “resistência”, encabeçada pelo Cardeal Gerhard Müller e outros purpurados, em favor das posições da doutrina tradicional. É a primeira vez que as diferentes perspectivas dos Padres sinodais são publicadas e divulgadas nos meios de comunicação. É também a primeira vez que as posições estão invertidas.

Depositam uma grande esperança no Papa Francisco aqueles que, sobre estes temas, criticam os Papas anteriores, acusando-os de conservadorismo. Ao mesmo tempo, aqueles que são considerados “papistas” e defensores da ortodoxia estão ansiosos, suspeitando das intenções do pontífice argentino. Para eles, o Sínodo será um teste decisivo. Dizem: veremos se este “Bispo de Roma” tem a intenção de exercer o seu papel de guardião da ortodoxia, ou, abertamente, deixará a doutrina sair dos trilhos. Quem acompanha certos sites tradicionalistas, constata que até se discute a possibilidade de se pedir a deposição de Francisco, caso não seja do agrado destes a atitude do Papa no decorrer do Sínodo, “por manifesta heresia”. Para os cultuadores da tradição, não importa que, na Igreja, o direito canônico admita a renúncia voluntária de um Papa, ou que afirme claramente que ele não pode ser julgado por ninguém. Chegou-se mesmo a se pensar na possibilidade de um cisma.

Também exagera o lado oposto, por achar que conhece as idéias e projetos “revolucionários” de Francisco, dando como certa sua vontade de introduzir grandes mudanças.

Sínodo é uma assembleia periódica de Bispos de todo o mundo que, presidida pelo Papa, se reúne para tratar de assuntos ou problemas concernentes à Igreja universal. O Sínodo de Bispos de 2014 tem como tema a família

Qualquer pessoa que conheça a história, sabe que a Igreja segue uma constante: nenhuma revolução autêntica é preanunciada, os embates reais são sempre inesperados. Aqueles que bradam por “avanços históricos” são desmentidos pelos fatos, muito menos traumáticos do que se antecipava. Portanto, os que fazem o papel de profetas do apocalipse têm boa chance de errar.

Obviamente, é possível que também nós sejamos desmentidos, mas, por ora, parece provável que os documentos finais do Sínodo terminem por seguir as linhas já conhecidas, em especial, pelos próprios membros da Companhia de Jesus: a confirmação da beleza dos ideais, porém, com um apelo ao pragmatismo flexível que leve em consideração a realidade dos homens e dos tempos. Uma sábia utilização do compromisso totalmente católico, e muito meritório, da rejeição ao aut-aut (ou isso ou aquilo) e da opção pelo et-et (esse mais aquele).

Outra vez, o Sínodo foi delegado aos bispos diocesanos, portanto, aos pastores que têm contato direto com o rebanho, que irão decidir sobre situações concretas, tendo em vista as orientações estabelecidas pela Igreja universal. Uma última exortação foi feita para que o trabalho da Comissão estabelecida por Francisco flua de forma rápida e com grandeza de espírito, e possa tornar mais célere e fácil as declarações de nulidade matrimonial.

Após a conclusão do Sínodo pode ser que haja satisfação, mas, também, certa decepção de ambos os lados, como já aconteceu muitas vezes. Felizmente, pois, esse é um dos segredos da milenar história da Igreja.

Papa Francisco em uma cerimônia de Batismo, no Vaticano

No entanto, qualquer abordagem para os problemas que afetam a família, deve levar em conta uma situação muitas vezes subestimada: entre as três grandes religiões monoteístas, o Cristianismo é a única em que a monogamia é explicitamente determinada, enquanto são permitidas quatro esposas aos seguidores do Corão, além de escravas concubinas, desde que o homem seja capaz de as sustentar. A poligamia também era uma realidade para os seguidores da Torá, as escrituras hebraicas.

E o catolicismo, entre as denominações cristãs, é a única em que vigora a indissolubilidade total do matrimônio, consequentemente, a proibição de acesso a um novo casamento religioso para os divorciados. É errado falar em “anulação do matrimônio” pelos tribunais eclesiásticos romanos: na realidade, é uma constatação da não-existência, desde o início, de um verdadeiro matrimônio. Entre os protestantes, o divórcio foi admitido muito facilmente, porque o matrimônio não é considerado um sacramento. Entre os ortodoxos, por meio de uma via dolorosa de confissões de culpa, pode-se chegar, embora nem sempre, ao divórcio. E mesmo se o segundo ou o terceiro casamento for celebrado de acordo com esse rito penitencial, o fato é que ele é reconhecido pela Igreja Ortodoxa e permite a reentrada plena dos cônjuges na comunidade.

Matrimônio católico: o único que não admite dissolução

O católico, portanto, é o único plenamente fiel às palavras definitivas de Jesus: O homem deixará pai e mãe e se unirá a sua mulher e serão os dois uma só carne. O que Deus uniu que o homem não separe”. São palavras um tanto quanto exigentes — e praticamente únicas, na história das religiões — o que ocasionou a reação dos discípulos, acostumados com a facilidade de se obter o divórcio: Se tal é a condição do homem a respeito da mulher, é melhor não se casar”. Os católicos devem refletir mais sobre a resposta de Cristo e estarem conscientes deste chamado à obediência que é, humanamente falando, um peso, mas ao mesmo tempo um privilégio: “Nem todos podem compreender, mas apenas aqueles a quem é dado. Quem puder compreender, compreenda”. Palavra do Evangelho.

O debate no Sínodo será entre homens de fé, conscientes de não serem mestres, mas servos da Escritura, capazes de a “compreender”. Recordá-lo, pode restaurar a confiança ao crente que está inquieto.

(Veja também os demais artigos da Coleção Igreja Hoje.)

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