Lumen ad Viam
Igreja Hoje
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6 min readDec 24, 2015

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Por Vittorio Messori

Na manhã de quarta-feira, 9 de setembro, atravessei a Porta Sant’Anna do Vaticano, em um carro conduzido por um oficial da Guarda Suíça, que, trafegando pelas vias dos famosos jardins vaticanos, levou-me ao monastério Maria Mater Ecclesiae. Como é sabido, este foi o lugar escolhido pelo Papa Emérito para uma vida de oração e estudo após a clamorosa renúncia. Um dos quatro Memores Domini (NT: associação religiosa inspirada pelo Padre Giussani, fundador do movimento católico Comunhão e Libertação) que cuidam de Bento XVI, acolheu-me e fez-me sentar em uma sala no primeiro andar, mas da qual se podia ver a cúpula (da Catedral de São Pedro) imponente. Poucos minutos depois, ali estou eu no elevador e encontro um Bento XVI, a sós, sorridente, na entrada do seu escritório.

Meu primeiro contato profissional e de amizade com o cardeal Joseph Ratzinger, remonta ao início dos anos oitenta, quando, juntos, preparamos o “Rapporto sulla fede” (NT: no Brasil o livro foi editado com o título “A Fé em Crise? O cardeal Ratzinger se interroga”) que tanto barulho fez por toda a Igreja. Desde então, nós nos encontramos com bastante frequência. Mas, tendo se tornado Papa, eu respeitava seus exaustivos compromissos. Não lhe solicitei audiências e não o encontrei uma única vez, até que ele próprio quis me ver novamente após a publicação de Perché credo (Por que creio), o livro que acabara de escrever com Andrea Tornielli. Respeitei sua aposentadoria, mas, depois, é claro, fiquei contente pelo convite, que me veio por meio de seu Secretário, de ir visitá-lo para uma conversa informal. Desde aquele dia, pensei que era meu dever não o constranger com perguntas de jornalista curioso, como sua relação com seu sucessor ou quais as razões “verdadeiras” da sua renúncia. Portanto, vou me abster de falar sobre as habituais perguntas sobre teorias da conspiração que surgiram depois desse nosso encontro.

Enquanto me curvava para lhe beijar a mão (como requer a tradição, a qual respeito, especialmente quando se tenta reduzir o papel e a figura do Sumo Pontífice), Sua Santidade colocou a mão sobre minha cabeça para me impor uma bênção, que recebi como um grande presente. Com a outra mão, apoiava-se em um suporte com rodas: agora, está impossibilitado de fazer os passeios com o Secretário nos jardins vaticanos. Sua capacidade de se mover é tão limitada que, para sair, é empurrado em uma cadeira de rodas, enquanto em casa se ​​move poucos metros, apoiando-se em um “andador”. Sob a batina branca se percebe a magreza do corpo. No entanto, o rosto não traz os sinais de seus quase 90 anos: é aquele de sempre, de eterna criança, que contrasta com a coroa de cabelos brancos e a vivacidade dos olhos claros. Em suma, uma bela fisionomia. E bela também a sua lucidez intelectual e a atenção dispensada ao interlocutor. Spiritus promptus, caro infirma (O espírito está pronto, mas a carne é fraca): a citação vem espontânea, estando ao lado de um “espírito” prisioneiro da “carne” que agora está fatigado por carregá-la.

Sentados na beira de dois sofás — próximos um do outro para facilitar sua audição que está em declínio — conversamos por mais de uma hora. Eu, como disse, abstive-me de fazer perguntas demasiado óbvias e fáceis. Da parte dele, no entanto, as perguntas vieram numerosas. Ele ouviu atentamente quando, a seu pedido, eu tentei fazer-lhe um resumo da situação da Igreja, pelo menos, como a percebia. No final, ele apenas disse: “Eu só posso rezar”.

Papa Francisco visita o Papa Emérito em 30/06/2015

Eu lhe pedi, no entanto, um presente: um De Senectute de memória ciceroniana (NT: De Senectute é um texto de Cícero sobre a velhice, um dos clássicos da antiguidade), mas, é claro, na perspectiva cristã, católica, recolhendo por escrito a sua experiência de senilidade, muitas vezes dolorosa, e a sua abertura à vida após a morte, a vida real, que espera por todos nós. Uma oportunidade preciosa para afrontar a questão dos últimos acontecimentos (que a doutrina católica chama “Novíssimos”: morte, juízo, purgatório, inferno e paraíso) que tem estado ausente de uma Igreja que não está preocupada apenas com a salvação eterna, mas com o bem-estar nesta vida.

Ele balançou a cabeça e respondeu: “Seria uma coisa valiosa, tenho muitas vezes denunciado este esquecimento da morte, esta remoção do futuro, do que vem pela frente, o ‘depois’. Você sabe que estou acostumado a pensar como um teólogo, a filtrar a realidade por meio de categorias filosóficas, que não poderia escrever qualquer coisa a não ser deste modo. Mas, agora, para um compromisso semelhante, falta-me a força”. E ainda: “Meu dever para com a Igreja e o mundo tento fazê-lo com a oração que ocupa todo o meu dia”. Oração verbal ou mental, Santo Padre? Ocorreu-me perguntar-lhe, talvez desnecessariamente. Sua resposta foi rápida: “Sobretudo verbal: o rosário completo, com as suas três coroas, em seguida, os Salmos, orações escritas pelos santos, passagens bíblicas e as invocações do breviário”. Para a oração mental faz muitas leituras de textos de espiritualidade combinados com os de teologia e de exegese bíblica.

Deixe-me então dizer que em desafio a minha vaidade ele quis, bondade sua, agradecer-me por um livro em particular, a investigação sobre a paixão de Cristo — Patì sotto Ponzio Pilato (NT: no Brasil editado como “Padeceu sob Pôncio Pilatos?”) — não apenas citado, mas recomendado nos dois primeiros volumes da trilogia dedicada a Jesus e publicado quando ele já era Papa. Obviamente, eu estava feliz por mim, como autor, mas não só por mim, também por aquela apologética (“Teologia Fundamental”, o termo clericalmente correto), demonizada depois do Concílio a ponto de querer se apagar seu nome dos seminários, mas que é essencial, e em relação à qual Ratzinger sempre insistiu, como teólogo e depois como Papa, isto é, o guardião supremo da fé. Ou seja, a possibilidade e a necessidade de não colocar em confronto, mas de poder trabalhar juntas a razão e a fé, inteligência e devoção.

Falamos sobre outros tópicos, mas, para estes, faz-se necessário discrição. Devo acrescentar — com um sorriso irônico, aos que insistem em pensar em um encontro tenebroso de conspiradores — que, apesar de ter chegado a hora do almoço, na verdade, já tinha passado e muito, não me veio nenhum convite para ir à mesa com ele. Bento XVI, disseram-me depois, come muito pouco (“como um passarinho”) e sozinho, dando uma olhada no noticiário: portanto, apenas raramente tem comensais.

Em resumo, como se vê, não são certamente coisas sensacionais as que eu tinha a dizer. Se eu pensei em escrever foi para confortar os leitores. Bem ao lado do túmulo de Pedro, há um ancião admirável, que durante oito anos conduziu a Igreja e que agora não tem outra preocupação a não ser a de orar por ela. Com empenho, mas sem qualquer angústia. E sem nunca esquecer que os Papas passam, mas a Igreja continua, e até o final da história vai repercutir a exortação da sua verdadeira Cabeça e Corpo, para nós que somos fracos: “Não temais, pequeno rebanho, esta barca não afundará, e apesar de todas as tempestades vai permanecer a salvo até o meu retorno”.

(Texto publicado na revista italiana La Nuova Bussola Quotidiana, em 16/09/2015.)

(Veja também os demais artigos da Coleção Igreja Hoje.)

(Curta a página Vittorio Messori em português.)

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