Umberto Eco: de católico a ateu

O enigma do distanciamento da fé

Lumen ad Viam
Igreja Hoje
Published in
5 min readApr 23, 2016

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Por Vittorio Messori

Por lhe ter conhecido, entrevistado, por ser seu leitor, não pude deixar de sentir um certo pesar. Por muito lhe admirar a inteligência, a cultura, o estilo, a ironia, o saber viver, senti, e uma vez disse isso a ele, ganhando em troca um sorriso enigmático, a tristeza do crente que está diante de um homem que fala da sua “apostasia definitiva”, de todas as religiões, começando, é claro, pela fé católica. Um jovem que estava entre os líderes da Juventude da Ação Católica na Itália, que até a universidade se nutria do conhecimento dos crentes antigos e modernos, um homem de comunhão diária, de confissão semanal, e que escolheu São Tomás para a sua tese, pensando mais na fé a defender do que no grau a conquistar.

E então, ao invés do extraordinário apologista do catolicismo, do polemista brilhante que os crentes teriam recebido como um dom, eis que da academia de Turim surge o Umberto liberal. Eco se tornou sim apologista, mas primeiro do agnosticismo, e depois — como admitiu — de um relativismo ateu, nomina nuda tenemus, afirmando-o com a ligeireza habitual, aparência distraída, de quem nunca se deixava atingir. [Nota do Tradutor: a expressão latina stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus (a rosa antiga permanece no nome, nada temos além dos nomes) deu origem ao mais famoso romance de Eco, “O Nome da Rosa”].

A decepção não me impediu de sentir um carinho sincero, e agora, o lamento por não poder ouvir mais coisas como a que ouvi no nosso primeiro encontro: “Se Pascal morasse no meu condomínio nos saudaríamos educadamente, mas não frequentaríamos a casa um do outro. Se, no entanto, ao invés dele, fosse Tomás de Aquino, à noite jogaríamos cartas no terraço, mas acabaríamos discutindo e indo atrás de advogados. E ele talvez me denunciasse à polícia por suspeita de terrorismo”.

Para a composição do meu livro “Investigação sobre o cristianismo”, escrito com diálogos com ex-crentes a fim de lhes compreender as razões, passamos uma longa tarde milanesa, a qual aproveitamos não para falar genericamente de cultura, mas de fé, de vida, de morte. Enquanto ele conduzia a conversa para a filosofia, eu replicava para que deixasse as controvérsias verbais e se voltasse para o concreto. A aposta a favor ou contra Deus nasce mais da experiência existencial do que a partir de argumentos teóricos. Por que motivos, supondo que ele fosse capaz de os decifrar, alguém que abraçou o Evangelho com tanto fervor, como o jovem Eco, decidiu retirar a sua esperança no Cristo?

Pareceu-me, com todo o respeito, que os argumentos da sua resposta, não escapavam da suspeita de que foram elaborados post factum, depois de algo acontecido, por racionalizarem um repúdio vindo do coração e da vida, mais do que da razão. Disse isso a ele. E ele foi rápido ao responder com sinceridade: “Reconheço de bom grado que, neste ponto, qualquer “prova” ou raciocínio serve apenas para nos convencer daquilo que já acreditamos. É verdade: o aspecto racional não é suficiente para explicar a minha história, mas nem apenas o aspecto biográfico. Outros que tiveram experiências semelhantes à minha mantiveram-se crentes. Parece-me que a perda da fé é como a interrupção de um circuito elétrico. Sobre as causas reais, profundas, que posso dizer?”.

Falamos da morte: um drama que, segundo ele, viveu na carne, desde que seu pai morreu inesperadamente. “Muitos anos se passaram desde então, mas penso nisso todos os dias. Não tento, como diria Freud, vingar-me de meu pai, mas vingá-lo. Até aqui é o que tenho dedicado a fazer no plano profissional. Eu, um colecionador de honrarias, como alguns dizem? Não, alguém que quer dar a seu pai a satisfação que ele esperava ver em seu filho, e que ele próprio não teve”. Eco, perguntei-lhe, onde está seu pai? Onde estão todos os mortos? Para onde vamos também? Ele disse: “Para além das portas de bronze há caos, escuridão. Ou há nada ou um deserto plano e desolado, sem fim”.

A morte, eu lhe recordei, é a aposta por excelência, aberta a muitos resultados possíveis. E se têm razão aqueles que dizem que Jesus é o Cristo que viria até nós? Não pareceu hesitar, como se já tivesse pensado várias vezes sobre Cristo: “Veja, se por acaso aquele Nazareno realmente quiser me processar, direi a ele mais ou menos as mesmas coisas que estou lhe dizendo: pensei muito e cheguei à conclusão de que não era você que esperávamos. Acho que poderíamos chegar a termos razoáveis. Se ao contrário ele for o Deus cruel e vingativo de certas seitas protestantes, então é melhor não ter nada com ele. Mande-me direto pro inferno, onde pelo menos há gente de bem”. Uma pausa e, em seguida, “Mas olhe que estou convencido que, se de fato um Deus existisse, seria aquele de São Tomás, com quem eu litiguei durante a vida, mas ele era um homem com quem, apesar de tudo, sobre as coisas que importam, se podia debater”.

Agora, o próprio Umberto Eco “sabe”. E devido ao respeito que de toda parte mereceu uma vida tão ativa, os crentes, independentemente da fé que professam, irão fazer uma oração diante do caixão daquele que — com coerência, sem hipocrisia — não quis a presença religiosa.

(Texto publicado no dia 22/02/2016 no jornal italiano Corriere della Sera.)

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