O anglicanismo é uma igreja reformada?

Por Revm. Peter D. Robinson,
Bispo Primaz da Igreja Episcopal Unida.
Traduzido por: Victor Abrunhosa Modesto

Victor Abrunhosa Modesto
IgrejadeCristo
10 min readJun 19, 2020

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O próprio título deste artigo dará a algumas pessoas certa estranheza, pois eles foram criados no mundo Pós-Tratados (1), no qual, se o Anglicanismo é visto como Reformado, é com um pequeno ‘r’ que é imediatamente seguido pela palavra católica. Ninguém do lado reformado do anglicanismo realmente discordaria disso, mas eles definiriam reformados em termos mais rigorosos do que simplesmente derrubar algumas crenças medievais a respeito da salvação.

O argumento de que o anglicanismo pertence à família de igrejas reformadas começa com a natureza da própria Reforma Inglesa. Ao contrário de muitos dos principados alemães, a Inglaterra teve uma reforma lenta, durando de 1533 a 1604 (embora a fase principal tenha terminado em 1571 com a publicação da versão final dos Artigos de Religião). No entanto, antes de fugirmos da ideia de que os Artigos haviam mudado fundamentalmente de caráter, é necessário lembrar que a versão dos Artigos em 1563 também estava no campo Reformado, assim como os 42 Artigos de 1553. Você teria que voltar aos Treze Artigos não publicados de 1537/1538 antes de encontrar uma declaração de fé do tipo luterana produzida por clérigos ingleses, e mesmo assim é muito hesitante, sendo o produto da política pró-alemã de Thomas Cromwell para o casamento de Cleves.

Se olharmos para os dois principais documentos confessionais da Reforma Inglesa, isso é, os 39 Artigos de Religião e o Livro de Oração Comum, uma série de proposições vem a tona e colocam a Igreja da Inglaterra nessa vertente da tradição teológica agostiniana que chamamos de “protestantismo” e, complementando isso, coloca a Igreja da Inglaterra no subconjunto conhecido como “reformado”. Portanto, vamos dedicar algum tempo a esses formulários.

Os Artigos

Os 39 artigos têm uma história bastante extensa quando se diz respeito a sua formulação, pois Cranmer trabalhava regularmente em uma confissão para a Igreja inglesa desde 1536. No entanto, um fator a ser enfrentado é que o próprio Cranmer amadureceu teologicamente ao longo de sua vida adulta, se tornando, primeiramente, de um católico humanista para um ‘luterano’ (luterano não convicto), e seguidamente, de ‘luterano’ a alguém que mantinha uma posição teológica que pode ser rotulada de ‘reformada’.

A questão pode ser respondida quando se olha declarações de fé, sermões e outros documentos escritos por Cranmer, em que ele foi cauteloso nos seus pronunciamentos públicos, evitando fazer declarações controversas, principalmente quando parecia ter apoio total dos que tinham autoridade sobre ele. Sendo assim, parece provável que Cranmer tenha se mudado do campo luterano para o campo reformado em algum momento antes de 1545, mesmo que em 1548, em resposta à necessidade de um catecismo da reforma, ele permitiu a publicação do catecismo de Justus Jonas, uma obra luterana.

Todavia, o Livro de Oração Comum de 1549 mostra a influência de Bucer e Melanchthon, pois, embora o formato seja muito conservador, as passagens doutrinais como as exortações na missa, mostram a influência dos reformadores luteranos (2). Ao que parece, Cranmer favoreceu o campo reformado durante o reinado de Eduardo VI. Com Peter Martyr, Martin Bucer, Fagius e Jan Laski (todos ativos na Inglaterra), juntamente com simpatizantes reformados ingleses como Nicholas Ridley, John Hooper, Rowland Taylor, Hugh Latimer, Miles Coverdale e Cranmer, a Igreja da Inglaterra no reinado de Eduardo VI assumiu uma forma marcadamente reformada. Essa forma deixou sua marca nos 42 Artigos de 1553. Os 39 artigos de 1563/1571 diferem pouco dos 42 artigos de 1552, exceto por um ligeiro amolecimento da redação de certos artigos e pela remoção de certas referências que perderam sua necessidade em 1563.

Em princípio, os Artigos de 1563 são melhor descritos como preocupando-se primeiramente com o estabelecimento de doutrinas para Igreja Inglesa (Artigos 1–8); sua aceitação da teologia agostiniana (artigos 9 a 18); sua clássica crítica protestante a Roma (artigos 19 a 24); sua aceitação da variante reformada da teologia agostiniana dos sacramentos e do ministério (artigos 25–33); e, finalmente, com as preocupações particulares da Igreja sobre o relacionamento das Escrituras e Tradição e Igreja e Estado (Artigos 34–39). Em muitos aspectos, é a influência de Bucer, Bullinger e Melanchthon que é mais forte do que a de Lutero ou Calvino. Eu, basicamente, descreveria os Artigos de Religião como sendo ‘reformados moderados’, o que significa que eles têm uma compreensão positiva e dinâmica dos sacramentos, que visa manter os aspectos positivos do ensino sacramental sem se atolar na especulação escolástica.

Na verdade, é nos seus ensinamentos sobre a Ceia do Senhor que os Artigos mostram seu perfil reformado moderado com mais clareza, na medida em que afirmam a ‘Presença Espiritual Real’ de Bucer, Calvino e Melanchthon, em vez das visões mais subjetivas como de Bullinger, ou a versão da União Sacramental, com sua dependência dos conceitos de linguagem de comunicação e onipresença (um amado da Ortodoxia Luterana), embora talvez seja mais próximo dessa intenção. Em outros aspectos, como a respeito da Justificação, Eleição e Autoridade da Igreja, os Artigos seguem uma linha entre as posições Reformada e Luterana na esperança de construir um Consenso Protestante.

Em muitos aspectos, porém, os Artigos de Religião se alinham teologicamente com seus contemporâneos reformados, como a Confissão Belga e a Segunda Confissão Helvética. No entanto, seu espírito é estranho à teologia racionalista do século XVIII, pois exige que o leitor se envolva positivamente com conceitos como Predestinação, Regeneração Batismal e Presença Espiritual e Real, que eram comuns no final do século XVI, mas eram bobagens para os racionalistas. Os modernistas acham difícil entender sua visão ortodoxa das Escrituras, enquanto os anglo-católicos consideram os Artigos insuportavelmente protestantes e tentam reinterpreta-los.

Livro de Oração Comum (LOC)

Se, teologicamente, a Igreja da Inglaterra estava mais ou menos unida à tensão alemã na tradição reformada, ela demonstrou bastante independência em sua liturgia. Suspeita-se que os puritanos estavam corretos em sua avaliação de que se Maria Sanguinária (Rainha Maria I da Inglaterra) não tivesse aparecido, Cranmer teria feito outras mudanças, mas Deus, em Sua providência, ordenou o contrário, resultando numa versão modificada do Segundo LOC de Cranmer de 1552, que se adequava ao propósito de Vossa Majestade Elizabeth I de criar uma Igreja Estabelecida Protestante.

Antes de entrar em detalhes, acho que precisamos eliminar alguns mitos. O primeiro deles é que o LOC de 1549 ainda é ‘católico’ enquanto o de 1552 é ‘protestante’. Diante disso, isso parece ser verdade, mas é preciso lembrar que as Exortações eram parte integrante da Liturgia como concebido por Cranmer e que no LOC de 1549 já continha a teologia eucarística da ‘Presença Verdadeira’ que o Cranmer maduro havia adotado em algum momento antes de 1549. Cranmer também aboliu o Cânon Gregoriano, o Ofertório e as principais elevações que eram vistas como os fundamentos da Transubstanciação da missa pelos reformadores. Em um sentido muito real, no LOC de 1549 há uma liturgia protestante que tenta eliminar o ‘romanismo’, enquanto o LOC de 1552 torna as credenciais reformadas muito mais aparentes.

Nos últimos 30 anos, surgiu um consenso de que a velha história de que Elizabeth I teria preferido que o LOC de 1549 fosse reintroduzido em 1559 foi largamente descartada. As pequenas mudanças em 1559 foram destinadas a reconciliar “luteranos” e conservadores culturais (para importar um conceito moderno). Assim, a Rainha e o Conselho concordaram em reter temporariamente as vestimentas da missa e grande parte da antiga parafernália de culto para reconciliar os leigos conservadores com a reforma. No final, Elizabeth I talvez tenha sido forçada a se mover mais rápido do que pretendia, e o efeito líquido das decisões políticas de 1558–1565 foi criar as duas tradições de culto dentro do anglicanismo: a Tradição da Corte (que governava o culto na Capela Real, nas catedrais e na Igreja Colegiada) e uma tradição mais reformada para as igrejas locais (paróquias). Essas duas tradições deveriam coexistir pelos próximos 300 anos, até que os principais elementos do culto das catedrais foram importados para as paróquias.

Os LOCs de 1552, 1559 e 1662 combinam elementos católicos, luteranos e reformados. Muito material tradicional foi retido para os livros de serviço antigos, embora fosse frequentemente retrabalhado. Por exemplo, o Breviário foi abreviado e retrabalhado na Oração da Manhã e da Noite, enquanto a Litania Latina tradicional foi retrabalhada nos moldes da Litania de Lutero e está presente na versão que temos no LOC hoje. Muitas vezes, Cranmer era o “filtro” através do qual as idéias continentais eram incorporadas à prática inglesa e, em particular, ele parece ter se inspirado em uma variedade de textos reformados e luteranos. A maioria das pessoas está familiarizada com a ideia de que Cranmer e seu Comitê usaram a ‘Consulta Simples e Religiosa’ elaborada para o arcebispo Herman von Weid por Martin Bucer e Philip Melanchthon como uma de suas principais fontes, pois é sabido que Martin Bucer e Peter Martyr Vermigli ofereceram críticas ao 1549, o que ajudou muito na revisão de 1552. No entanto, Cranmer não permitiu que seu próprio senso do que era “apropriado” fosse dominado por seus conselheiros, e pelo menos no que diz respeito à Oração da Manhã e da Noite, além da adição de uma introdução penitencial, o tom conservador permaneceu.

O Ofício Batismal recebeu alguns ajustes, como a Omissão de Crisma e o Chrisom (bata de batizado), mas as mudanças mais radicais foram no Serviço de Comunhão. O LOC de 1549 preservou grande parte da antiga estrutura da missa, as únicas omissões significativas foram a gradual, as orações do ofertório e o antigo cânon. Este serviço relativamente tradicional inseriu nele a Ordem de Comunhão de 1548 antes da recepção do sacramento. Isso consistia em uma Exortação, Confissão Geral, Absolvição, Palavras Confortáveis e a obra-prima de Cranmer: a Oração de Acesso Humilde. A Ordem da Comunhão continha a maior parte do material de reforma no Serviço de Comunhão de 1549, mas em 1552 foi adotada uma abordagem muito mais radical com Cranmer e seus associados, pegando o material tradicional e misturando-o para produzir um novo serviço semelhante em forma ao tipo da Liturgia Reformada que Bucer havia produzido em Strasburg na década de 1530 e no início da década de 1540, com recursos do serviço Reformado de Bucer, como o Decálogo, agora aparecendo no LOC.

Examinarei a relação entre o trabalho litúrgico de Cranmer e o de Bucer em um post futuro, mas, por enquanto, ficarei satisfeito com as seguintes observações. O inicio da missa (3) tradicional é consideravelmente reorganizada. Em vez de Coleta pela Pureza, Introdução, Kyrie e Gloria, agora temos a Coleta pela Pureza, o Decálogo com uma Kyrie expandida como resposta a cada Mandamento. As Coletas, Epístolas e Evangelhos são mantidas em grande parte como em 1549, enquanto o Credo e o Sermão seguem em seu lugar de costume e, depois da coleta de esmolas, ocorre a Oração pelo Militante da Igreja, refletindo o rito mozarábico (4) e a prática da Igreja Reformada em Estrasburgo.

Na maioria dos domingos, o culto poderia terminar nesse ponto com uma ou mais coletas e as bênçãos. Como o povo não estava acostumado a frequentar a Comunhão, a celebração semanal da Eucaristia logo se tornava a exceção e não a regra. Como resultado, tornou-se necessário avisar quando haveria uma Comunhão, e duas exortações são fornecidas para esse fim, uma das quais apareceu originalmente em 1549.

Quando a Ceia do Senhor fosse celebrada, o item seguinte seria uma exortação ao auto-exame e à digna Comunhão. Essa vedação da mesa era típica da prática reformada, embora a exortação de Cranmer deva tanto às fontes luteranas quanto às reformadas. Depois vem o Convite e a Confissão Geral, seguidos pela Absolvição e Palavras Confortáveis. Cranmer faz uma de suas raras notas literárias aqui, revertendo a ordem de Bucer, colocando a Absolvição em primeiro lugar. O Prefácio sobrevive, como era comum no luteranismo, assim como o Sanctus. Em seguida, segue a Oração de Acesso Humilde, que nessa posição se torna uma oração por participação digna no mistério, e não uma que visa uma recepção digna dos elementos. A Oração Eucarística vem a seguir e consiste em pouco mais do que uma breve declaração do porquê a igreja faz isso e as Palavras da Instituição. Em 1552 e 1559, não houve atos manuais. A comunhão seguida pela oração do Senhor é seguida. A Oração Eucarística é completada pela Oração da Oblação ou pela Oração de Ação de Graças; depois, a Gloria in Excelsis é dita e, por fim, o presbítero (5) dispensa a congregação com uma bênção.

Uma coisa que é notável no rito eucarístico de Cranmer é que ele coloca a Comunhão no meio da Oração Eucarística para reforçar a ideia de que é antes de tudo um serviço de comunhão (unidade da igreja) e enfatizar que a Presença Real não está localizada no pão e vinho, mas é através da participação fiel/digna no sacramento. Na verdade, foi um golpe de mestre quando as palavras de administração no LOC de 1549 foram reformuladas para o LOC de 1559, pois seu equilíbrio de linguagem realista e simbolista expressa nitidamente o entendimento buceriano da Eucaristia que Cranmer adotou na década de 1540.

Pode-se ver a partir disso que a principal razão pela qual anglo-católicos fizeram o possível para remodelar e reinterpretar o rito eucarístico (claramente reformado) que Cranmer deixou a Igreja. Estruturalmente, compartilha semelhanças com as liturgias reformadas holandesas e alemãs, que são óbvias demais para negar; no entanto, essas semelhanças são obscurecidas pela remoção de elementos tradicionais, como o Prefácio e o Sanctus, das formas continentais.

Ainda não pesquisei suficientemente o Ofício Batismal, mas minhas rasas investigações mostraram que o tipo de linguagem muito positiva que se vê no Livro de Orações a respeito da regeneração batismal não é estranho à teologia reformada de meados do século XVI. Bucer, Bullinger, Calvino e Vermigli tinham uma alta visão do batismo (talvez tão alto que surpreendesse seus seguidores do século 21 se quisessem investigar o assunto). No entanto, terei que deixar isso de lado para um artigo futuro.

Pode ser visto pelas notas acima que as duas principais formas que herdamos do período da Reforma, isso é, os 39 Artigos de Religião e o Livro de Oração Comum, concordam teologicamente com as tradições reformadas na Alemanha, na Suíça e na Renânia, embora elas sejam em algum grau em desacordo com a tradição escocesa. De modo geral, as diferenças entre a Igreja da Inglaterra do final do século XVI e as Igrejas Reformadas de Zurique, Basileia, Palatinado do Reno, etc. eram de governança e costumes, não de teologia. Portanto, todas as tentativas de “desprotestar” a tradição anglicana são, por definição, não históricas em sua base.

(1) “…depois do Movimento de Oxford…”

(2) Possível tradução seria “Reformadores do Rio Reno” (Rhenish Reformers), que é uma alusão aos reformadores (principalmente luteranos) que viviam próximo do oeste da Alemanha.

(3) Fore-Mass.

(4) Rito da Igreja de Roma que era utilizado na Peninsula Ibérica.

(5) Possível tradução seria pastor ou, mais precisamente, padre (priest).

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