Um breve guia para o Ano Cristão

Somos criaturas do tempo

Pr. Diego Avlis
IgrejadeCristo
10 min readFeb 19, 2020

--

Para John Witvliet “Somos criaturas do tempo”, de modo que a forma como contamos o tempo fala muito sobre nós e todos nós estamos inseridos em um calendário e contamos o tempo de alguma forma (Introdução ao Ano Cristão, 2016).

Vanessa Belmonte afirma:

“A nossa rotina, as coisas que fazemos e como as fazemos, a forma como gastamos o nosso tempo, as demandas que nos ocupam, o jeito que vivemos cada dia ordinário de 24 horas… importam grandemente e são o substrato onde Deus nos encontra, nos transforma, nos ensina a amá-lo e a amar os outros” ~ A Liturgia do Ordinário, 2017

James White concorda com essa ideia ao declarar:

“A maneira como usamos o nosso tempo é uma boa indicação do que consideramos de importância primordial na vida. Sempre podemos ter certeza de encontrar tempo para aquelas coisas que consideramos mais importantes, embora nem sempre admitamos perante os outros ou até perante nós mesmos quais são nossas prioridades reais” ~ A Linguagem do Tempo, 1997, p. 38

Em outras palavras, o tempo é uma realidade indissociável de nossas vidas — a medida que “somos criaturas do tempo” — , a escolha que nos cabe é como contaremos nossos dias ou ao redor de que calendários organizaremos nossas agendas pessoais? Quais são as nossas prioridades?

Desde muito cedo na história da Igreja os cristãos tentaram organizar o seu tempo ao redor de Cristo e dos eventos de sua vida. O calendário usado no ano cristão é fruto do trabalhar do Espírito Santo na Igreja ao longo de gerações. Ele inicialmente veio em contrapartida aos calendários pagãos, pois a medida que os primeiros cristãos iam convertendo-se do paganismo eles precisavam mudar as liturgias pagãs refletidas em seus calendários pagãos por liturgias cristãs refletidas em um calendário cristão.

O objetivo era que Cristo fosse o centro do suas agendas pessoais.

“Sim, existe um outro tipo de calendário conhecido como Calendário Litúrgico ou Calendário Cristão, também chamado de Ano Litúrgico ou Cristão. Um calendário elaborado em tempos antigos e utilizado ao longo da história da igreja. Um calendário que nos ensina os ritmos da vida através de uma narrativa” ~ Vanessa Belmonte, A Liturgia do Ordinário, 2017

Para James White, o início da organização do tempo pelos cristãos não está do ano, mas “pela semana cristã, principalmente com o testemunho do domingo” (A Linguagem do Tempo, 1997, p. 40).

Ainda segundo White, a Didaqué logo institui dias de jejuns cristãos, que deveriam ser diferentes dos hipócritas fariseus celebrados as segundas e quintas-feiras, diferentemente, os cristãos o eram nas quartas e sextas-feiras. Mas mesmo diante disso, a Igreja conservava o domingo como o seu principal dia de festa, como uma comemoração da ressurreição do Senhor, uma páscoa semanal.

Com o tempo, assim como o domingo era o centro da semana cristã, a festa da páscoa passou a ser celebrada com maior intensidade como o centro do ano cristão. Tanto é que já nas discussões dos concílios ecumênicos a discussão a respeito do tempo estava presente com, por exemplo, as controvérsias a respeito da data na qual a Igreja celebraria a páscoa, onde a Igreja decidiu que, diferentemente da páscoa judaica, que poderia incidir sobre qualquer dia da semana, a páscoa cristã sempre deveria ser celebrada em um domingo.

Para White:

“A páscoa fora o centro do ano judaico, como comemoração da libertação da escravidão; ela não era menos importante para os cristãos […] A antiga comemoração judaica da libertação foi agora completamente renovada em Jesus Cristo” ~ A Linguagem do Tempo, 1997, p. 42

Esse lugar central ocupado pela contagem do tempo no culto cristão, segundo James White, fala muito sobre a fé cristã. Segundo o autor o cristianismo é uma religião que leva o tempo a sério, pois é no tempo que Deus se fez e faz conhecido, “é por meio de eventos efetivos acontecendo no tempo histórico que ele se revela” (A Linguagem do Tempo, 1997, p. 37).

No culto o nosso tempo presente é posto em contato com os atos de Deus no tempo passado e no tempo futuro.

“Eu preciso da igreja para me lembrar da realidade: o tempo não é uma mercadoria que eu controlo, administro ou consumo. A prática do tempo litúrgico me ensina, dia a dia, que o tempo não é meu. Ele não gira ao redor de mim. O tempo gira ao redor de Deus — o que ele fez, o que está fazendo e o que vai fazer” ~ Tish Harrison Warren, apud. Vanessa Belmonte, A Liturgia do Ordinário, 2017

O ano cristão, deste modo, pode ser definido como:

“uma série de celebrações e estações que dividem o calendário e conduzem os cristãos em um ciclo anual de memória e antecipação através de eventos-chave na vida de Jesus” ~ John D. Witvliet, Introdução ao Ano Cristão, 2016

E segundo James White, esse calendário é “a base para a maior parte do culto cristão, com exceção dos ocasionais ritos de jornadas ou de passagem” (A Linguagem do Tempo, 1997, p. 37).

Enquanto “uma ordem de culto bem pensada assegura uma dieta equilibrada das ações da adoração” (Diego Avlis, Uma Introdução ao Ano Cristão), “O Ano Cristão garante que os adoradores serão alimentados com uma dieta equilibrada de temas bíblicos […] de afeições ou emoções cristãs” (John D. Witvliet, Introdução ao Ano Cristão, 2016).

“ O calendário cristão traz luz para minha rotina diária ao me lembrar que eu faço parte de um povo que vive em uma história diferente” ~ Vanessa Belmonte, A Liturgia do Ordinário, 2017

O ano cristão inclui dois tipos de observância: dias e estações litúrgicas.

Os Dias Litúrgicos

O dia litúrgico coincide com o dia social ou civil, indo de meia-noite a meia-noite. Contudo em dias especiais, o dia litúrgico adota o padrão judaico de contagem do tempo, assim, as vésperas destes dias especiais são parte da celebração daquele dia.

Estes dias especiais são os domingos, as festas e as solenidades.

Os Domingos

Dentre os sete dias da semana, o primeiro dia, ou seja, o domingo tem preeminência, por ter sido neste dia que ocorreu a ressurreição de Jesus. Nele, portanto, a Igreja celebra o mistério pascoal a cada semana, é, deste modo, seu principal dia especial.

As Festas

Entre os muitos dias especiais que compõe o calendário cristão, as festas representam os três maiores eventos do cristianismo, os eventos-chave da história da nossa salvação.

A festa do Natal (25 de dezembro) celebra a autodoação do Verbo Divino, no seu nascimento, lembra o nascimento de Jesus em Belém.

A festa da Páscoa celebra a ressurreição de Jesus. É a principal celebração do ano cristão e também a mais antiga festa cristã. A data da Páscoa determina a maioria das datas móveis do ano cristão.

A festa de Pentecostes (cinquenta dias depois da Páscoa) celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos e discípulos. Ela é celebrada cinquenta dias depois da festa da Páscoa e dez dias depois da solenidade da Ascensão — que falaremos mais a frente.

As Solenidades

As solenidades são dias especiais de valores cristológicos, onde celebramos eventos da vida de Jesus, que são eventos da nossa vida em Cristo, e dias especiais para a vida da Igreja.

A solenidade da Circuncisão de Jesus ou do Santo Nome de Jesus (1º de janeiro, oito dias depois do natal) chama a atenção para a plena humanidade de Cristo, sinalizada pela sua inserção em sua comunidade histórica, sua identificação com os padrões do judaísmo, visando a salvação do povo judeus.

A solenidade da Epifania (6 de janeiro), de alguma maneira, apropria-se da teologia da solenidade da Circuncisão e a amplia, mostrando que todos os povos da terra, rendidos ao nome que está acima de todo nome — Jesus — , podem ser salvos. É a solenidade da manifestação de Jesus no tempo e no espaço.

A solenidade da Apresentação de Jesus no templo (2 de fevereiro, 40 dias depois do Natal) é onde comemoramos o dia em que Jesus foi reconhecido por Simeão e Ana como o enviado de Deus, o Cristo. Essa data pode chamar atenção especial para os idosos de nossa sociedade, já que entre os personagens principais desta solenidade estão dois idosos, usados para reconhecer Jesus como o messias.

A Quarta-feira de cinzas ou, simplesmente, cinzas (40 dias antes da páscoa) é o primeiro dia da Quaresma — falaremos mais a frente. Ela fala da necessidade de conversão e mudança de vida, além de apontar para a fragilidade da vida humana, efêmera e sujeita a morte.

O domingo de Ramos (domingo antes da páscoa) é o primeiro dia da semana da paixão e relembra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, como um prenuncio de sua paixão.

A Sexta-feira da paixão (sexta-feira antes da páscoa) é o dia que relembramos a crucificação de Jesus e sua morte na cruz.

A solenidade da Ascensão de Jesus (40 dias depois da páscoa) é o dia que celebramos a subida de Jesus ao céu, com a promessa — concretizada em Pentecostes — que nos enviaria o Sano Espírito.

O domingo da Trindade (domingo depois de Pentecostes) é o dia que lembramos o mistério da Trindade e celebramos esse grande dogma da fé cristã.

Os Dias Comuns

Mas não é só de dias especiais que o calendário cristão é feito. Cada dia comum tem papel fundamental na liturgia do ordinário, onde dia após dia o Senhor vai nos transformando a imagem do Seu Filho e acrescentando a nossas comunidades de cristãos os que estão sendo salvos pela graça de Deus.

As Estações Litúrgicas

A estação litúrgica é um período do ano cristão de vários dias ou semanas que conduzem ou seguem o espírito de determinadas festas e solenidades.

O calendário está baseado em dois ciclos: aquele que focaliza a festa do Natal e aquele que focaliza a festa da Páscoa. Nestes, as estações do Advento e da Quaresma servem como tempo de preparação e expectativa, as estações depois do Natal e depois da Páscoa de tempos de rejúbilo e extensão das festas. As demais estações complementam e atendem as outras necessidades do calendário cristão.

A estação do Advento, composta pelas quatro semanas que antecedem a festa do Natal, é um tempo de gratidão pela dádiva que é Cristo e de expectativa pela Sua segunda vinda. “Ele contém tanto ameaça quanto promessa” (James F. White, A Linguagem do Tempo, 1997, p. 54).

Deste modo, enquanto o ano civil começa com o dia 1º de janeiro, o ano cristão começa com o 1º domingo do advento.

A estação depois do Natal comemora a autodoação de Deus até a manifestação divina a todas as gentes, na solenidade da Epifania. Ela inclui a solenidade da Circuncisão (1 de janeiro) e encerra com a solenidade da Epifania (6 de janeiro).

A estação depois da Epifania celebra a manifestação de Cristo na história, é um tempo comum ou ordinário.

As três semanas antes da Quaresma — a próxima estação que será exposta — é destacada da estação depois da Epifania como um tempo de preparação remota a páscoa. Nele a liturgia foca na criação e na queda do homem. Ele inicia com o domingo da septuagésima — três domingos antes da Quarta-feira de cinzas — , e passa pela sexagésima e quinquagésima até a terça-feira conhecida nos calendários seculares como terça-feira gorda, por ser o dia que antecede o jejum quaresmal.

Com o desenvolvimento do ano cristão, ao redor da festa da Páscoa foram se constituindo dois tempos: a estação da Quaresma e a estação depois da Páscoa.

A estação da Quaresma se origina como um intensivo período de formação catequética final para aqueles catecúmenos — convertidos sob treinamento — que iriam ser batizados na vigília da Páscoa. Mas a motivos para crer que sua origem também estivesse associada a um jejum em memória aos 40 dias de jejum de Cristo no deserto.

Portanto, esta converge como um tempo de preparação, tanto para batizados como para não batizados. Ela inicia na chamada Quarta-feira de cinzas, por causa da imposição de cinzas na fronte dos cristãos.

A estação depois da Páscoa é uma extensão da festa da Páscoa, segundo Agostinho:

“um período não de labor, mas de paz e alegria” ~ apud. James F. White, A Linguagem do Tempo, 1997, p. 37

Em outras palavras, ela é uma celebração duradoura da vitória de Cristo sobre todos os poderes inimigos.

Tal estação é celebrada por alguns grupos cristãos durante os cinquenta dias que seguem a festa da Páscoa até a festa de Pentecostes. Contudo, em nosso guia os dez dias que conclui esse período, ou seja, depois da solenidade da Ascensão de Jesus, ainda que continuem em espírito pascoal, são destinados a outro propósito, a oração pela unidade dos cristãos, e compõe uma preparação mais intensa a festa de Pentecostes.

Estes dez dias juntamente com a semana após a festa de Pentecostes até o domingo da Trindade, inclusive, compõe a estação da Unidade, pois nestes dias, ainda em espírito pascoal, oramos pela unidade da Igreja — nos primeiros dez dias — e celebramos o vigor do Espírito Santo dado a Igreja por Pentecostes, além de finalizarmos com a celebração do nosso maior exemplo e modelo de unidade, a Trindade Santa.

A estação depois da Trindade sinaliza a caminhada longa e difícil da Igreja na terra até a vinda de Cristo em glória.

James nos alerta que:

“A observância do tempo, naturalmente, também pode tornar-se um expediente idólatra como qualquer outra coisa que é boa. O tempo pode ser usado simplesmente para enfeitar nossos cultos e para dar-lhes a aparência de estar na moda. A observância do ano eclesiástico [ano cristão] pelas razões erradas é pior do que inútil, uma vez que podemos acabar prestando culto a nossos próprios expedientes, em vez de a Deus” ~ A Linguagem do Tempo, 1997, p. 53

Ele ainda nos lembra que as comunidades de cristãos são influenciadas por outros calendários além do calendário cristão, que acrescentam eventos e comemorações a vida da Igreja local. Para ele, as comunidades locais acabam compondo seus próprios “calendários pragmáticos”, proporcionando uma estrutura necessária para a vida comunitária (A Linguagem do Tempo, 1997, p. 55 e 56).

--

--

Pr. Diego Avlis
IgrejadeCristo

Ser um sinal da Providência de Deus em minha geração