A Terra é um só país, e nós, seus cidadãos

O que uma família iraniana refugiada tem a nos ensinar sobre tolerância

Giovanna Parise
Iguana Jornalismo
9 min readDec 3, 2018

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Martha Yazdani, Marya Yazdani, Heshamatollah Yazdani, Dorothy Yazdani e Louisa Yazdani, da esquerda para a direita. (Foto: Arquivo pessoal)

Deveria ser estranho falar de intolerância no século XXI. Já pisamos na lua, mas ainda não pisamos nas diferenças e continuamos a pisar nos diferentes.

No dia 18 de agosto houve um violento conflito entre moradores de Pacaraima, em Roraima, e refugiados venezuelanos, que fugiram da crise humanitária de seu país. Mas além da violência física, os refugiados enfrentam o preconceito da sociedade no dia a dia, seja com um olhar que julga ou com uma ação que exclui.

O Brasil tem uma política receptiva aos refugiados. As primeiras levas de que se tem registro foram dos europeus, que fugiam das guerras. Recentemente, haitianos, sírios e libaneses vieram fugidos da destruição do terremoto e das guerras.

Na década de 1980, aconteceu a Revolução Islâmica, no Irã. A partir daquele momento, o Islamismo foi instituído como religião oficial, e minorias passaram a ser perseguidas. Chegaram ao Brasil 50 famílias iranianas, entre elas, a dos Yazdani.

Ele era diferente

Heshmat queria entrar na faculdade. Desde o colégio, ele não entendia por que ficava em uma fila separada de seus colegas. Ele e outros bahá’ís. Heshmat sabia que isso acontecia por causa da sua religião, mas não entendia o porquê.

Certa vez, um menino novo, bahá’í, entrou no colégio. Os outros meninos começaram a incomodá-lo e o agrediram. Heshmat e seus amigos foram defendê-lo. Foi quando alguém pegou um tijolo e jogou em direção a Heshmat, atingindo sua cabeça. Isso lhe rendeu uma cicatriz visível, mas há outras que a intolerância religiosa lhe causou e que não necessariamente enxergamos a olho nu.

Heshmatollah Yazdani nasceu no Irã, em 1958, em uma família de bahá’ís. A Fé Bahá’í é uma religião que surgiu em 1852, no Irã, quando seu fundador, Bahá’u’lláh, foi aprisionado por defender a causa do profeta que o precedeu e que anunciara a sua vinda, O Báb. Entre seus princípios estão a defesa dos direitos humanos, como o direito de escolha da religião, a igualdade entre homens e mulheres, o abandono de qualquer tipo de preconceito e a unidade mundial.

Os bahá’ís são minoria no Irã, apesar da fé ter nascido lá. Desde sua origem, há uma forte discriminação por parte da sociedade. Entretanto, ela se intensificou e passou a ser praticada diretamente pelo Estado em 1979, quando estourou a Revolução.

Heshmat viu sua casa ser queimada, a sede bahá’í que frequentava ser destruída, seus amigos serem mortos, seu pai ser preso. Com 21 anos, ele só queria entrar na faculdade, mas era um bahá’í no Irã.

Crises e vitórias

Heshmat tinha uma vida confortável. Seu pai era gerente da Pepsi antes da Revolução — quando muitos bahá’ís foram destituídos de cargos importantes. O que ele não tinha eram direitos básicos. Em 1981, com 23 anos, tomou uma decisão: fugir para os Emirados Árabes para continuar os estudos. No país vizinho, ficaria na casa de um primo de terceiro grau. Lá, ele trabalhou como baterista, vendedor e cozinheiro. Heshmat ficou ocupado, mas não conseguiu deixar de notar a filha do seu primo. Se apaixonaram.

Marya nasceu nos Emirados Árabes, também em uma família bahá’í. Com 15 anos, decidiu seguir a religião — idade estipulada para a escolha -, porém não sofreu as mesmas perseguições que Heshmat. Nos Emirados não há esse problema. Eles se casaram depois da relutância dos pais de Marya, que era nove anos mais nova que ele, e ela engravidou.

Heshmat, Marya e Vadieh nos Emirados Árabes, na década de 1980. (Foto: Arquivo pessoal)

Falar sobre os sete anos que esteve no país vizinho, para Heshmat, é difícil. Foram anos de luta. No hospital, prestes a ganhar o primeiro filho, Marya precisou disputar a atenção dos médicos com uma das mulheres de um sheik. Quando chegaram para atendê-la, já era tarde para o bebê. Após a crise, a vitória: algum tempo depois, Marya engravidou de novo e Vadieh nasceu.

Eis outra crise: todos os documentos do iraniano venceram, e o governo não permitiu a renovação. Heshmat foi preso e não poderia mais permanecer no país. As Organizações das Nações Unidas (ONU) cuidaram do caso, juntamente à Assembleia Nacional Bahá’í dos Emirados. Em um ato de coragem, o casal aceitou a proposta da Assembleia e decidiu ir para o Brasil para contribuir com o projeto de propagar a Fé Bahá’í nos países de Terceiro Mundo.

Um problema com o visto fez com que mãe e filha tivessem de esperar 45 dias para embarcar.

A adaptação na selva

Em abril de 1989, no Aeroporto Internacional de Guarulhos, Heshmat chegou; mas não sozinho. Veio acompanhado das sete malas do casal. Depois de pesquisas, eles concluíram que o Brasil era uma floresta gigante, com pessoas cobertas por folhas e onde nem os animais encontravam alimentos. Trouxeram roupas para os primeiros cinco anos de Vadieh, filtro de água, comida. “Qualquer coisa que tu pensar a gente trouxe, porque diziam que não tinha nada”, conta. Mas o mais importante ficou com Marya, do outro lado mundo: dinheiro e os papéis com os contatos para os quais ele deveria ligar ao chegar no país.

Com um pouco de dinheiro no bolso e com a sorte de achar uma pessoa no aeroporto que falava em inglês, ele encontrou o membro da Assembleia Bahá’í do Brasil que estava encarregado de ajudá-lo. Foi para Campinas, onde havia uma comunidade bahá’í, para esperar a chegada de Marya e Vadieh, que aconteceu após 45 dias. Em julho, estavam os três juntos, no primeiro de muitos destinos da família.

Encaminhados pela Assembleia Nacional Bahá’í do Brasil, o casal e a filha foram para Porto Alegre. Depois de um mês e meio morando na sede bahá’í da capital, a família ganhou a missão de ser pioneira na cidade de Esteio. Foi lá, em 1990, que Heshmat montou seu primeiro restaurante, ainda pequeno, de comida persa: o Shoarma.

Prato que dá nome ao restaurante: Shoarma. (Foto: Instagram @shoarmacanoas)

Marya tem certeza de que os escritores dos livros que leu sobre o Brasil nunca vieram para cá. Não era tudo floresta. As pessoas usavam roupas. Mais que isso, elas ajudavam muito. Já no primeiro ano no Brasil, eles tiveram outra filha, Dorothy. As dificuldades aumentaram, mas a fé acompanhou, e a solidariedade dos brasileiros, também. Algumas vezes, Heshmat atrasou o pagamento do aluguel até que recebesse algum dinheiro.

Nos primeiros dois anos, Marya não aceitava o fato de estar em um lugar desconhecido, com pessoas desconhecidas e, principalmente, com uma língua desconhecida. Novamente a hospitalidade brasileira a salvou. Grávida de Dorothy, ela pedia para a vizinha, que falava inglês, traduzir para o médico o que ela sentia. Assim eram as consultas. Hoje os dois falam português, mas não abandonam o forte sotaque persa.

Vadieh, a filha mais velha, não teve apenas sua história modificada com a vinda ao Brasil, mas o nome também. Antes de a colocarem na escola, os pais se preocuparam com o bullying que a menina poderia sofrer, devido à palavra que seu nome remete em português. Vadieh, agora, era Martha Vadieh.

Sete anos se passaram desde que os Yazdani foram para Esteio, e surgiu a oportunidade de morar em São Leopoldo, onde eles abriram o segundo restaurante e onde Louisa nasceu para completar a família. Três anos depois, eles se interessaram por uma franquia de tapetes e decidiram investir em Passo Fundo — venderam o Shoarma de São Leopoldo, deixaram o Shoarma de Esteio sob o comando do irmão de Heshmat, que estava no Brasil, e se mudaram outra vez.

A investida foi malsucedida e, em um ano, estavam em Sapucaia do Sul, cidade preferida por Marya, onde a família viveu por 18 anos. Há dois anos, abriram um Shoarma na cidade vizinha, Canoas. Em 2018, eles se mudaram outra vez para Esteio, por questões de segurança, mas o coração dos Yazdani é de Sapucaia. Atualmente, a família possui dois restaurantes, um em Esteio e outro em Canoas.

Todas as mudanças foram em busca de oportunidades de trabalho e com o intuito de propagar a Fé Bahá’í, e em cada uma delas eles perderam muitos bens materiais e investimentos. Heshmat diz que, apesar de todas as perdas, a riqueza da alma sempre permaneceu, e é o que importa. Entre crises e vitórias, os Yazdani se apaixonaram pelo Brasil. Heshmat não conseguiu fazer uma faculdade, mas suas três filhas, sim.

Heshmatollah, em seu primeiro restaurante no Brasil, 1992. (Foto: Arquivo pessoal)
Área externa do restaurante de Heshmat, Marya e Dorothy, em Canoas. (Foto: Arquivo pessoal)

Culturas que se misturam

Em casa, a língua oficial é o persa. “É a língua do amor deles”, explica Dorothy. Entre os amigos da escola e até mesmo entre as irmãs, a conversa é em português, mas com os pais não. Este foi o primeiro aviso que receberam de que não eram totalmente brasileiras. “Eu chegava da escola e contava algo para minha mãe, em português, e, quando eu acabava, ela respondia, em persa, que não tinha entendido nada. Eu repetia tudo”, conta Louisa.

As três não se consideram nem 100% brasileiras, nem 100% persas. No Brasil, perguntam de onde elas vieram. Quando viajam para o Oriente, também perguntam de onde elas são. Há quem se sinta perdido por não ter uma identidade única, mas elas gostam disso. Os valores bahá’ís as ensinaram a “pegar o melhor dos dois mundos”. Uma cultura não é melhor que a outra, são diferentes. Louisa, por exemplo, reconhece a riqueza cultural do Irã e a liberdade do Brasil.

Decoração persa na casa de Marya e Heshmat e no restaurante dos dois e de Dorothy. Fotos: Giovanna Parise

Há outros valores que se misturam entre a religião, o país de origem e a própria família. A união da família, por exemplo, confunde-se com a unidade mundial defendida por Bahá’u’lláh, assim como a valorização do trabalho honesto, o serviço à humanidade e o abandono dos preconceitos.

Um dos hábitos dos bahá’ís é promover encontros de orações e de estudo, em que os praticantes falam sobre os valores difundidos por Bahá’u’lláh. Desde o Irã, Heshmat participava desses momentos, e, quando ele e Marya vieram para o Brasil como pioneiros de algumas cidades do Rio Grande do Sul, começaram a organizar aqui. Hoje, a casa dos Yazdani é um ponto de encontro especial para a comunidade, que admira a história da família.

Além disso, há um valor em especial no qual a família e a religião acreditam que, inclusive, ainda engatinha no Brasil: a igualdade entre homens e mulheres. Para eles, a humanidade é como um pássaro: uma asa é o homem e a outra, a mulher. Quando em desequilíbrio, ela não voa. Dorothy veio do Oriente Médio, mas sofre preconceito no Brasil por ser mulher e empresária.

Colônia de férias bahá’i, no Irã. Meninos e meninas dividem o mesmo ambiente, em contraste com as práticas do governo iraniano. (Foto: Arquivo pessoal)

A Terra é um só país, e os seres humanos, seus cidadãos

Um refugiado não sai do seu país porque quer. Ninguém abandona a família, um futuro planejado, os amigos já consolidados, uma cultura enraizada, porque quer. Ele faz isso por necessidade. No caso dos Yazdani, por não terem o direito básico de escolher sua religião. Mas há muitas outras razões que levam as pessoas a se refugiarem ainda no século XXI: fome, guerras, ditaduras, medo.

Quando chegaram aqui, Heshmatollah e Marya foram bem recebidos. Os brasileiros faziam de tudo para ajudá-los, e, aos poucos, o casal se sentiu em casa. Para Heshmat, se tivesse segurança, o Brasil seria o melhor país do mundo. Marya, porém, notou algumas mudanças desde que chegou. “Acho que se fosse hoje talvez não teríamos sido tão bem recebidos no Brasil, mudou muito”, diz. Para ela, a principal mudança foi o julgamento das pessoas. “Hoje as pessoas julgam mais, e sempre querem se beneficiar com os outros.”

A família não entende por que tantos brasileiros são contra a ajuda aos refugiados venezuelanos. Bahá’u’lláh diz que a Terra é um só país, e os seres humanos, seus cidadãos. A concepção de fronteiras está no imaginário, o planeta não foi criado assim. Talvez ainda tenhamos muito o que aprender com os Yazdani, com a Fé Bahá’í e com todos os refugiados do mundo.

Giovanna Parise

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Giovanna Parise
Iguana Jornalismo

Estudante de Jornalismo da UFRGS e repórter do Iguana Jornalismo