o peso e a leveza do ser

“sentiu um peso, mas não era o peso do fardo e sim da insustentável leveza do ser”

Amanda Costa
Amanda Costa
10 min readFeb 17, 2021

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Photo by Lance Asper on Unsplash

gosto de escrever diários porque me conecta comigo mesma e tira de mim todo peso, toda angústia e tudo aquilo que não consigo expressar em voz alta. mania que herdei do meu pai como por osmose. ele sempre andava pra cima e pra baixo com um bloquinho e um lápis à mão. dizia que pensava demais e sua mente produzia ideias novas quase que vinte e quatro horas por dia, e algumas delas eram realmente boas demais para perder por uma simples falha genética como o esquecimento. então ele anotava, assim como eu estou fazendo agora sentada em uma pedra, de frente para o mar, enquanto observo meu amor de longe.

olho pra imensidão na minha frente e deixo as palavras fluírem como se fossem levadas pela maresia ao meu redor e transformando-as em algo real, quase palpável. apesar de gostar de escrever o que sinto, eu nunca escrevo sobre ele. desde que eu o conheci há um ano nunca expressei uma letra sequer. no fundo, acho que tenho medo de tornar real demais e tirar essa magia que me faz sentir borboletas no estômago quando estou com ele. então prefiro o abstrato, o sem explicação. o apenas sentir.

logo no começo de nosso relacionamento, eu decidi que não escreveria sobre ele. engolia as palavras e às vezes até me afogava nelas. o não dizer pode ser cruel. penso que meus silêncios são capazes de lhe contar tudo e espero ser suficiente.

aquele silêncio mútuo e reconfortante que vem depois de nossas longas conversas sobre a vida, sobre as pessoas, sobre o mundo cada dia mais caótico. como se a gente absorvesse toda aquela densidade de reflexões e precisasse de um tempo para digeri-las depois. gosto desses momentos em que preparo um chá com todo amor e cuidado, como se fosse um ritual e levo pra gente tomar na cama; ele gosta de dizer que eu sou meio bruxa e faço alquimia com as mãos nesses chás, pois eles são realmente reconfortantes. eu gosto de ouvir e isso me faz sorrir.

nesses momentos não falamos sobre trabalho, já basta o peso do cotidiano nos consumindo dia após dias. mas sei que uma parte da cabeça dele não o deixa sossegar de fato. então, de repente, ele pegar no sono. eu não me importo. gosto de observá-lo dormir, a respiração lenta, o corpo relaxando aos poucos. gosto de contornar com as pontas dos dedos os vincos de estresse de sua testa. queria poder tirar com as mãos toda as preocupações dele, assim como faço alquimia com as ervas para os chás.

agora, olhando ele caminhar pela areia e pegando conchas pela borda, sei que está cansado e precisa de um tempo sozinho para pensar. ele mesmo deu a ideia de alugarmos um airbnb numa praia tranquila pra descansar e ficar longe de toda agitação da cidade grande mesmo que por apenas três dias. ele trabalha numa grande empresa de tecnologia no vale do silício e seus horários são extensos e com muitas demandas, onde passa a maior parte do tempo de frente para uma tela do computador ou celular, até mesmo depois de chegar em casa, precisa resolver coisas para o dia seguinte. a rotina é exaustiva.

vendo de longe, ele parece tranquilo. desde que eu o conheci, sinto que ele tem um tipo aura de calmaria, de gente com fala mansa, que come devagar e respira como se estivesse meditando. acho que foi isso que me fez apaixonar. ele é do tipo que te escuta, não apenas ouve, mas realmente escuta e se esforça ao máximo pra entender. e ele te olha. no fundo dos olhos. acho que ele aprendeu com o oceano. tenho a sensação de que essas águas tem um jeito único de entender a gente, de saber quais são nossas dores e ao mesmo tempo de nos dar a cura, mesmo que às vezes a gente não mereça. tais águas faz aliviar toda tensão e de alguma forma te enxerga de verdade. ele é assim. mesmo trabalhando demais, enquanto eu reclamando que ele trabalha demais, ele sempre dá um jeito de me enxergar. acho que se ele não fosse assim, seria muito pior de aguentar todo o caos do mundo e o dele próprio. então eu tento ser pra ele o melhor que posso, assim como ele é o melhor que pode pra mim.

não somos perfeitos, muito menos o casal ideal, se é que existe isso de casal ideal. o cinema e a literatura podem nos enganar da forma mais poética possível e muitas vezes a gente nem se dá conta. mas quando estamos juntos a gente se encaixa. não sei explicar, mas a gente se encaixa, como se estivéssemos sincronizados no mesmo espaço e tempo, e mais ninguém conseguisse acompanhar nossa frequência além de nós. gosto de pensar que nossos olhos miram para a mesma direção.

e falando em olhos, lembro quando os dele me viram pela primeira vez. eu me senti… invadida. e ao mesmo tempo abraçada apenas por aquele olhar. foi em uma reunião de trabalho, quando precisavam de uma designer para o projeto de um aplicativo. a prima de uma amiga me indicou e de certa forma o destino se fez concreto, quase como um gesto físico. foi bem na época que eu tinha terminado um relacionamento de anos em que eu me sentia invisível. estava sofrendo e jurei em vão que não ia mais me envolver com ninguém.

mas aí, nos conhecemos. e eu soube que ele era tudo que eu mesma sempre sonhei ser, pois ele era como esse oceano em que olho agora: lindo, misterioso, selvagem, livre. eu adoro isso nele. adoro a forma como eu me vejo inteira, pois ele me ajudou a reunir todos os pedaços que fui perdendo pelo caminho até chegar aqui. adoro quando a gente ri de nossas quedas, pois sabemos que temos o colo um do outro para amparar. foi nele que eu encontrei as raízes que precisava para me fortalecer.

— trouxe pra você. — ele diz após ter vindo em minha direção, sentando ao meu lado e beijando minha testa. era uma porção de conchas de cores e formas variadas. eu sorri e senti meus olhos marejaram, porque as coisas mais simples tocam no fundo da alma quando sentimos que foram feitas com amor.

— obrigada. — agradeci e dei um selinho em seus lábios. — como se sente?

— bem, eu acho… pensei bastante.

— em que?

— em tudo. — ele respondeu e ficou em silêncio enquanto olhava para o horizonte. eu respeitei o momento dele. sei que vai falar quando sentir pronto. — ontem foi intenso, obrigado. — ele disse de repente e eu não entendi. ao ver minha expressão de confusão ele continuou: — ontem à noite… na cama. foi especial. você sentiu?

fechei os olhos e deixei as lembranças da noite anterior invadirem minha memória. chegamos após o pôr-do-sol na casinha alugada, guardamos nossas coisas, tomamos banho e começamos a preparar o jantar juntos enquanto ouvíamos música latina. ele pegou gosto por esse tipo de música quando percebeu que meu corpo reage de imediato ao ritmo contagiante e meus quadris se movem involuntariamente. tomamos vinho rosé, dançamos, comemos, rimos. estávamos felizes, até que o telefone dele tocou e quando viu que era trabalho ele chorou. desesperadamente. estava frustrado e aquilo despedaçou meu coração. sem pensar muito, fiz a única coisa possível: eu atendi e disse que ele não estava disponível. ele me olhou incrédulo e eu apenas desliguei o celular “você está de folga e eu não quero ter que dividir você com o trabalho. hoje não”, eu disse autoritária e com certa raiva.

em seguida ele limpou as lágrimas com a barra de sua camiseta e avançou em minha direção, me beijando ferozmente, como se sua vida dependesse daquele beijo. foi diferente do que eu estava acostumada, um tanto bruto até. e gostoso. em pouco minutos estávamos nus na cama, sem nenhum tipo de pudor. sorrio quando lembro dos meus gemidos, das mãos dele tomando para si todas as partes de mim. realmente foi intenso. e depois foi leve, quando nos abraçamos e nossos corpos se uniram como se fossem apenas um. meus braços em volta do pescoço e cabeça dele, minhas pernas entrelaçadas em seu abdômen como quem implora por colo; ele sustentando o peso do meu corpo, me segurando como quem diz “por favor não vá embora nunca”. e nós nos beijamos e beijamos e beijamos. e quando parávamos para respirar ele dizia baixinho em meu ouvido o quanto me amava. ficamos assim até amanhecer. por alguma razão tomamos café da manhã em total silêncio até o momento de virmos até essa praia. olhei para ele e sorri:

— foi perfeito, meu amor. obrigada de verdade por tudo que você me faz sentir. — eu respondi e ele sorriu de volta pra mim antes de voltar a olhar para frente.

— acho que tinha algo adormecido em mim, e depois da noite passada despertou. você me faz sentir tão vivo. parece pleonasmo dizer que me sinto vivo enquanto tô aqui falando, mas você me faz pulsar, me lembra que meu coração bombeia sangue, entende? eu tô tão cansado, que tem dias que simplesmente tenho vontade de dormir e nunca mais acordar, porque isso seria tão mais fácil. tem dias que eu ando no piloto automático, apenas existindo. eu perco toda fé em mim mesmo e no futuro. então vou até seu apartamento e vejo você preparando chá pra mim e me sinto em paz outra vez, porque com você tudo fica leve. mas no dia seguinte eu volto a pesar, porque o mundo não parece mais fazer sentido, porque tá todo mundo no piloto automático também, não só eu. tá todo mundo esgotado. tem dias que a ansiedade toma conta de mim e eu esqueço quem eu sou de verdade, ou quem eu fui algum dia. quem eu sou quando estou com você. faz um tempo que eu me sinto assim, cada dia mais, cada dia pior… eu sei que você sente, que você percebe… mas eu cheguei no meu limite, eu realmente não aguento mais. e ainda assim, você me abraçou daquele jeito ontem à noite, me fazendo perceber que não precisa ser assim; que não pode mais ser assim. — ele voltou a ficar em silêncio.

eu nunca ouvi ele verbalizar tudo o que estava dentro dele dessa forma, mas imagino que ele deva falar nas sessões de terapia. eu sei, eu percebo, ele tenta dizer mas não consegue porque não quer me preocupar. isso causa uma dualidade de sentimentos em mim. fico feliz de ser essa pessoa que o faz sentir vivo, porque é como ele me faz sentir também. ao mesmo tempo, tudo que quero poder tirar toda essa dor dele.

— pensar em você me lembra o motivo pelo qual eu respiro. — ele volta a dizer. — enquanto pegava as conchas e pensava em tudo eu tomei uma decisão. eu vi você de longe escrevendo em seu diário, e céus, como eu amo olhar pra você…

— o que você decidiu? — perguntei.

— vou pedir demissão. você acha absurdo?

— não, eu acho o ato mais corajoso que você poderia tomar. você já estava postergando isso a um bom tempo, né?

— você me conhece…

— eu estou com você, meu amor. sempre. sei o quanto você é bom no que faz e o quanto lutou para chegar onde está agora, mas não vale a pena destruir sua sanidade mental por um trabalho que te deixa infeliz. você deu tudo de si naquela empresa por tantos anos, está na hora de se colocar em primeiro lugar outra vez.

— eu sei, e não seria capaz de tomar essa decisão se não fosse pelo seu apoio e sem acreditar que meu futuro é ao teu lado. me sinto mais leve, indescritivelmente leve, como se tivesse acabado de tirar um estorvo enorme das costas apenas por decidir.

lembro quando li milan kundera pela primeira vez e as palavras dele me marcaram para sempre. “sentiu um peso, mas não era o peso do fardo e sim da insustentável leveza do ser”. arrisco dizer que é assim que meu amor se sente neste instante. e acho que é assim que as pessoas se sentem quando finalmente fecham um ciclo de suas vidas que não faz mais sentido.

— obrigado por seu meu cais. — ele disse enquanto olha para as ondas quebrando na rebentação. eu queria responder que ele também era o meu: minha terra firme fincada ao mar, o ponto exato onde posso dizer que cheguei onde queria, pois era seguro e sem amarras, mas guardo pra mim. — deveríamos nos mudar pra cá, construir uma casinha simples na beira da praia, com conchas penduradas na porta de entrada… acho que perto da água, tudo é mais feliz, não acha? não quero mais viver no piloto automático, nem com essas amarras que o que excesso de trabalho me causou. — continuou e eu afirmei que sim com a cabeça, eu viveria com ele em uma casinha simples à beira bar. eu simplesmente viveria com ele em qualquer lugar do mundo. se antes eu tinha qualquer resquício de dúvida, agora tenho certeza que esse homem é o amor da minha vida. como não poderia ser?

— esse tempo todo eu estava tentando escrever sobre você no meu diário, mas não consegui. — eu disse a ele em resposta. ele me olhou intrigado.

— por que não?

— acho que depois que eu te conheci me tornei eu mesma outra vez e mesmo aos tropeços do dia a dia, mesmo com todo esse esgotamento, sinto que esse mundo louco faz mais sentido desde então. como poderia escrever isso se nenhuma palavra parece ser capaz de descrever a dimensão do que eu sinto apenas por você… respirar ao meu lado?

Ele sorriu e soltou o ar que havia prendido em seus pulmões com medo da resposta.

— obrigado por não escrever sobre mim, assim podemos apenas viver tudo que se há pra viver e nada mais. — disse e me abraçou enquanto juntos olhávamos para o mar.

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