Bia Fauro
Imagine S.A.
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4 min readJan 27, 2018

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Era um dispositivo incrível: informava a temperatura (do ambiente e do usuário), exibia todas as notificações sociais, monitorava as corridas, as calorias e o sono, recebia e fazia chamadas, além de mostrar corretamente as horas, mas isso era só o básico. O que interessava a ele eram as funções relacionadas à saúde: com apenas uma gota de sangue do usuário o relógio dava um relatório completo com tudo que se possa querer saber a respeito do seu estado atual de saúde.

Não, José não era hipocondríaco. É que ele tinha bronquite crônica, o que era interessante acompanhar, e ano passado ele exagerou um pouco nos doces, vai que sobe o colesterol. Seu avô por parte de pai e uma tia por parte de mãe tiveram diabetes, não custa nada ter um pouco mais de cuidado.

Custou dez parcelas de 59,90, o relógio.

Logo nas primeiras semanas o novo acessório provou o seu valor: José corria mais rápido e mais longe com a monitoração dos batimentos cardíacos aliada a um programa de treino intervalado de alta intensidade específico para iniciantes. Assim que ameaçava chegar um resfriado, vinha uma mensagem dizendo a dose exata de vitamina C necessária para aumentar a imunidade. José também passou a tomar menos água — sim, menos — para seguir à risca as recomendações do seu personal health assistant. Até passou a dormir melhor, quem diria? As suas crises de insônia nervosa (dos mesmos criadores da gastrite nervosa, de acordo com suas teorias) finalmente tiveram um fim.

Um dia, no entanto, uma notificação surpreendeu nosso pobre José: ele foi diagnosticado portador da síndrome do cérebro inchado, doença raríssima na qual o cérebro começa a reter líquidos e vai inchando a ponto de ser esmagado pela cabeça. O tempo corrido desde o início da retenção até o desfecho fatal, ao contrário do que se possa pensar, leva cerca de minutos — tempo esse que seria mostrado em contagem regressiva assim que o processo se iniciasse, a qualquer momento.

Aquilo foi uma punhalada no coração do nosso jovem herói. Ele passou a viver à flor da pele, como se cada dia fosse o último de sua vida: faltava às sessões de fisioterapia respiratória, comia o que lhe dava na telha, dormia mais tarde, pegou a sua lista de coisas-para-fazer-até-os-30 e tratou de se mexer. Tirou o atraso das séries que se comprometeu a acompanhar e voltou a praticar cantadas no espelho para a Adriana do RH. Nem ia mais no gastro, nem na terapia. Mantinha-se atento, contudo, ao alarme fatídico.

Mas vamos acelerar essa história, que já deu o que tinha que dar para mim, para o José e, provavelmente, para você, meu paciente leitor. Vamos ao dia em que toca o alarme do início do fim da vida do nosso herói.

Assim sucediam-se os dias do nosso ex-hipocondríaco (não; ele nunca foi hipocondríaco, erro meu) quando ele finalmente acordou resolvido a falar com a sua musa inspiradora. Chegou uma hora mais cedo, nesse dia. Dane-se a corrida.

— Bom dia, Dri. Tudo bem?
— Oi José. Veio cedo, hoje. Bom dia. Tô bem, e você?
— Bem, também.

— Bom, você aceita um café?
— O da máquina?
— É, o da máquina… eu tava indo tomar e… pensei se talvez… ou não…

Eles foram andando até o final do corredor meio sem saber o que dizer um ao outro, porque todos sabiam o que estava acontecendo entre eles muito antes de qualquer um admitir. Mas, corajoso como era, estava prestes a elogiar o sorriso tímido da moça, quando o alarme tocou.

(Não adianta ficar contrariado, eu avisei que iríamos direto para o dia do alarme e, de qualquer forma, o nosso herói não iria mesmo se declarar se não estivesse à beira da morte.)

1: 59
1: 58
1:57…

— Dri, você…
— O quê?
— Você… — ele não sabia se falava que que ia morrer ou, bem, que ia morrer.
— O que foi, José? Caramba, sua cara tá horrível!
— Eu tenho dois minutos de vida! Eu tenho a síndrome do cérebro inchado.
— Meu Deus! Mas como assim?! Vamo já pra enfermaria! Vem!

Ele mal teve chance de recusar; saiu correndo atrás dela. Já podia sentir sua cabeça levemente diferente, um pouco pressurizada, talvez; precisava falar com ela, nem que seja a última coisa a fazer na vida.

00:43

Chegaram à enfermaria; finalmente ela parou. Os miolos dele estavam quase estourando (literalmente), quando enfim ele disse:

— Seu sorriso é lindo! Sua voz é música pros meus ouvidos. Foi um prazer te conhecer. — 00:38… Começou a sentir latejar.

Não soube dizer se a moça ouviu ou não… ela tinha entrado para falar com a enfermeira e o deixou sozinho… abandonou-o… e ele ia passar seus últimos segundos com a certeza de ter sido rejeitado pela moça mais sensível, mais fofa, mais gentil e mais amável que já conheceu na vida.

A visão se escureceu. José caiu de joelhos no chão, pouco antes de chegarem com a maca e o colar cervical. Não havia luz no fim do túnel; era tudo boato, pensou. E então aconteceu. O apito final, com o contador zerado, vermelho, anunciava o fim do nosso infeliz José.

Pííííííííííííí

Abriu os olhos; todos olhavam para ele. Algo estava errado, ele não entendia nada; Adriana, mais perplexa ainda, ao ver que ele estava bem, perguntou o que é que ele tinha falado antes de ela entrar na enfermaria. José olhou para o mostrador do smartwatch personal health assistant e leu a mensagem:

“08h00 — Treino de corrida não realizado. Recomeçar a contagem?”

José cancelou o alarme; atirou o relógio longe; sentou heroicamente na maca estreita onde estava puxou sua amada num beijo de tirar o fôlego.

De fato, aquele foi o fim do infeliz José. E, de fato, também, aquele smartwatch personal health assistant foi um dispositivo incrível (eu digo que foi, e não que era, porque fiquei sabendo que o fabricante anunciou um recall do modelo, que possuía um defeito acerca de uma certa síndrome cromossômica).

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