As profundezas ridículas do escafandrista de si

Helenira Porfírio De Souza
Imagine S.A.
Published in
2 min readApr 25, 2018

Em uma manhã dessas em que já se acorda ouvindo músicas que possam tirar o sujeito de um cenário e levar para universos outros, desperto depois de dormir de frente para a tela luminosa do computador onde estava em uma festa junto com outros hologramas.

Aprisionada em corpo fêmeo não se pode ir longe nos tempos e espaços entendidos como para o ilimitado corpo de Homem. Corretivo nas olheiras, colírio nos olhos desidratados pela exposição constante a luz branca e ao ar condicionado, hidratante nas mãos.

Condicionamentos são a chave que abre as portas da alienação. Carrego a bicicleta pela escada até a porta da rua onde introduzo a chave e giro com um gesto condicionado.

No caminho, sinto que tudo é pesado, grande demais e ao mesmo tempo rarefeito demais, livre de um jeito que assusta. Entro em uma loja de artigos esportivos, compro uma blusa de mergulho rosa e preta, coloco também as calças, igualmente justas. Levo a versão azul e preta e também uma amarelo-limão, e é assim que me vestirei de hoje em diante.

Há dois quarteirões do prédio onde monto bandejas com refeições balanceadas para pacientes em tratamento de câncer, retiro os fones de ouvido, a imagem das infinitas possibilidades se estilhaça, verifico que as etiquetas estão intactas nas fantasias de mergulhadora, entro em uma padaria e vou direto ao banheiro, visto meu jaleco, sapatos masculinos, cinto de couro.

Na clínica há um aquário, ele é fixo na parede e, há um peixe que de tão grande mal conseguiria girar em torno do próprio eixo. Alguém esqueceu um jaleco comprido na copa, levo comigo até meu armário, onde estão minha mochila com roupas de mergulho para mim e para dois dos peixes grandes, e um frasco de morfina, presente de um amigo que fez sua residência na clínica, seringa nova, agulha e nenhuma instrução sobre como proceder, água destilada.

Vestido de preto e rosa, despejo o frasco todo no aquário e, ouvindo o som das luzes borbulhantes pelos fones de ouvido, abro a tampa do aquário e, com a cabeça agora submersa sorvo o máximo que posso, como uma bomba a esvaziar um tanque. Alguém se aproxima, e se afasta, se perde em meio a sequências de luzes em que me perco, como em uma festa de hologramas, mas, em que todos são luz sem contorno, incontidos, sem limites ou condicionamentos, mais livres que pássaros, livres como a mulher que fui em todas as festas virtuais e em todos os carnavais. A liberdade é ridícula fantasia.

--

--