O dia que Aleister Crowley foi notícia no Brasil.

Flavio Watson
Imprimatur
Published in
4 min readJul 26, 2023

--

Dias atrás, a partir de um tweet da Isabel Barreto encontrei essa joia do jornalismo nacional: uma matéria de página inteira sobre a expulsão de Aleister Crowley da França. Com o título “Porque a França finalmente expulsou o Summo-Sacerdote do Culto do Diabo”, a matéria foi publicada no Correio Paulistano em 06 de outubro de 1929, e pode ser lida digitalizada em alta resolução na hemeroteca da Bilbioteca Nacional.

Porém, após ler tudo fiquei com uma forte impressão de que esse texto, ou pelo menos algum texto original que serviu de base pra ele, foi plantado pelo próprio Crowley. Apesar do tom sensacionalista, a matéria é elogiosa no que o Crowley gostaria que fosse. E, por outro lado, no que ela trás de denúncia é também que o Crowley gostaria que falassem dele.

A primeira coisa que me chamou a atenção, foi um trecho em que trata da carreira poética de Crowley no final do século XIX. Nela lemos que “A Inglaterra o considerava um talento privilegiado e promissor”. Só que não foi bem assim. Tirando uma ou outra crítica positiva, num geral sua obra poética não teve grande repercussão popular ou especializada. Suas duas primeiras publicações “Aceldama — A place to bury strangers in” e “White Stains”, uma coletânea de poesia erótica, tiveram apenas 100 volumes impressos e circularam basicamente entre a comunidade acadêmica de Cambridge, onde estudava na época.

Porém, mesmo após alguns anos dedicados à Grande Obra, Crowley via a si mesmo primeiro como um poeta, do que como mago ou profeta. Inclusive, é como preenche seu cartão de registro nos EUA, em 1918, Present Occupation: Poet.

Outro trecho que me chamou a atenção na matéria, são citações diretas do Livro da Lei. A matéria é de 1929, porém o Liber Legis só seria publicado em português décadas depois, por Marcelo Ramos Motta. Além disso, é notável que em uma publicação cujo foco seja falar do “Summo-Sacerdote do Diabo” as citações não são sejam dos trechos mais polêmicos. Ao contrário, não apenas são citações que falam de amor, como são precedidas de relatos que contrastam com o que se poderia pensar de uma caricatura de satanista e potencial risco para a sociedade:

Aliás, citar nominalmente Jane Wolfe e Lea Hirsig também é estranho. Qual jornalista brasileiro em 1929 teria essas informações? E por que as colocaria assim numa matéria? Do jeito que as informações surgem no texto, parecem saídas de de um press-release.

A matéria também cita a morte de Raul Loveday na Abadia de Thelema. Esse evento foi determinante para o fechamento da Abadia e expulsão de Crowley da Itália, principalmente devido aos enormes escândalos, promovidos pela viúva de Loveday que em inúmeras entrevistas relatava o carater nefasto da Abadia e que seu marido havia falecido devido às terríveis condições do local. Porém, ao contrário do que uma cartilha sensacionalista ditaria, o texto rapidamente esclarece que “foi provado que ele morreu de uma inflamação intestinal”, o que de fato foi o caso.

Em pelo menos mais uma ocasião, o próprio Crowley produziria um texto contra si, para se promover. Em 1942, sob o nome de Justus M, representante de uma certa Society of Hidden Masters, ele escreve uma carta para si próprio exigindo que confessasse que as pinturas exibidas por Frieda Harris (as lâminas do Tarot de Thoth) no Royal Society of Painters in Water Colours haviam sido feitas sob sua orientação, mas que devido a um acordo para garantir o financiamento da exposição, seu nome havia sido retirado de propósito dos créditos. A carta era apenas uma forma de tornar pública sua participação, a contragosto de Frieda Harris e os financiadores da exposição, claro. Naturalmente, nunca existiu nenhum Justus M, ou qualquer Society of Hidden Masters

De volta ao Correio Paulistano, é improvável que o próprio Crowley tenha mandado algo pra ser publicado aqui. Ou mesmo algum discípulo. Até onde sabemos, os primeiros textos thelemicos chegam em solo nacional pelas mãos da Fraternitas Rosicruciana Antiqua apenas nos anos 30. Mas talvez o jornal tenha usado como base alguma matéria em inglês ou francês e esta tenha sim sido pautada pelo próprio Crowley.

Seja lá como for, não deixa de ser notável que essa matéria de página inteira, ricamente ilustrada e com dados tão específicos tenha sido publicada justamente na página 11. E como diz Nuit: “Meu número é 11, como todos os números daqueles que são de nós.”

(esse artigo foi adaptado de um fio publicado por mim no Twitter em 25 de julho de 2023. Revisado e corrigido em 12 de janeiro de 2024.)

--

--