Reflexões sobre o Tarot: Arcano XI — A Força

Soror S.872
Imprimatur
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7 min readMar 25, 2024
A Força, Frederich von Amerling

Uma das tarefas do processo iniciático no estágio em que me encontro é “estudar algum método geralmente aceito de divinação”. Como o tarot já estava mais ou menos presente em minha vida desde antes de me unir à Ordem, foi natural que minha atenção voltasse para ele. Então, no início de 2024 me propus a refletir sobre cada arcano por um período livre de tempo. Essas reflexões não são feitas respeitando alguma ordem ou sequência. Cada carta é tirada aleatoriamente após algum momento de introspecção e conexão.

Este texto é o primeiro de uma série onde pretendo compartilhar os resultados dessas reflexões. Importante frisar que os apontamentos feitos não são ortodoxos, mas sim fruto de impressões e associações pessoais, produtos da forma como percebo o universo ao meu redor e dos materiais que acesso em conjunto com as imagens de cada arcano.

A primeira carta que me visitou nesta experiência foi o arcano XI (ou VIII, dependendo do baralho). Utilizei o deck do Tarot Lo Scarabeo, do qual gosto muito porque mistura elementos de três baralhos icônicos: Marselha, Rider-Waite e Thoth.

A Força, Tarot Lo Scarabeo

Nesta carta, a mulher toca gentilmente a cara do leão, quase como se estivesse fazendo um carinho nele. O fato dela não estar em pé mas sim ter descido até o nível do leão para que seus olhos ficassem na mesma altura, para mim, é muito significativo. A mulher possui uma feição tranquila, a trança em seu cabelo é tão longa que toca o chão e acaba se misturando com um punhado de flores vermelhas.

Ao fundo, duas sombras humanas aparecem sendo iluminadas por um raio de sol que rompe o céu carregado de nuvens.

Numa interpretação livre, esse arcano representa as forças selvagens e instintivas do ser sendo integradas pelas porções mais conscientes. No caso, essa integração acontece de forma gentil, sem que essas forças sejam reprimidas ou subjugadas de forma compulsória. É a parte mais elevada do ser que “desce” até os recônditos instintivos em busca de realizar esta união – por isso a mulher está abaixada ao lado do leão. Eles se olham nos olhos, numa atitude de cumplicidade e confiança.

O fato dela não estar ajoelhada e vulnerável pode indicar que, caso seja necessário se resguardar da imprevisibilidade da fera, está pronta para se levantar e interromper a interação.

Seus cabelos descendo até a terra são como a consciência que permanece em contato com o “céu” e com a terra ao mesmo tempo. Desse contato íntimo com o divino e o material, a existência torna-se fértil e floresce.

A mulher usa uma joia sobre o terceiro olho e logo associei ao fato que a intuição é parte essencial nesse processo de integração “superior/inferior” na medida em que pode indicar, de maneira natural e sem as amarras da racionalidade, os melhores meios para que isso aconteça, bem como é uma forma através da qual o instinto integrado consegue se expressar.

As sombras ao fundo representam a própria sombra individual. Elas estão debaixo de uma árvore que toca os céus e, quando as nuvens da confusão, do medo e do ego destreinado dão uma brecha, podem receber a iluminação que almejam.

Numa perspectiva “negativa”, esse arcano pode representar justamente o oposto do que foi dito até agora. Forças instintivas em descontrole, a sombra dominando a consciência e também uma atitude de permissividade com nossa própria impulsividade/agressividade.

O caráter de união entre espírito e matéria presente neste arcano justifica sua posição exatamente no centro de todas as cartas, quando dispostas em três grupos de sete conforme as etapas do processo de individuação (isso na numeração convencional, pois no baralho de Rider-Waite, Lo Scarabeo e outros, A Força é o arcano VIII, mas isso é assunto para outro texto).

Numa analogia com a Cabala, ela poderia ser representada como Tipharet, o centro para onde outras cinco esferas convergem a partir do segundo triângulo da Árvore da Vida (Chesed, Geburah, Netzach, Hod, Yesod) formando o reino arquetípico “por trás” do reino da matéria de Malkuth.

Assim como Tipharet recebe e reflete as emanações de Kether e Malkuth, também A Força concentra as porções divinas e materiais do indivíduo – “o que está em cima é como o que está embaixo”.

Por essa razão, do meu ponto de vista faz muito mais sentido que este arcano seja representado sob o número 11, ao invés da Justiça. Pois para chegar neste estágio de intercâmbio entre ambas porções do ser, é preciso antes conquistar o equilíbrio das próprias forças, natureza e poderes (portanto A Justiça sendo o arcano VIII), caso contrário a possibilidade de ser dominado por instintos e impulsos descontrolados é grande.

Meu plano era refletir sobre esta carta por no máximo dois dias, porém sempre que pensava em trocar de arcano algo acontecia e assim ela foi ficando no meu altar por mais tempo. Até que um dia, lendo um livro no metrô enquanto voltava para casa (Breve curso sobre sonhos, de Robert Bosnak), descobri que o deus Mercúrio (Hermes para os gregos) revelava-se para os alquimistas sob a forma de um dragão ou leão que ruge! Resolvi pesquisar a respeito e, numa busca rápida, a única referência que encontrei mostra mercúrio (o elemento) como um leão em uma imagem que representa Azoth, um remédio universal ou solvente potente procurado por alquimistas. Este termo – Azoth – mais tarde evoluiu para uma expressão poética do elemento mercúrio.

Azoth

Acreditava-se que Azoth/Mercúrio era o agente essencial de transformação. O espírito animador oculto em toda a matéria e que torna possível a transmutação.

Éliphas Levi menciona Azoth da seguinte forma:

“Esta palavra Azoth é formada da primeira e da última letra do alfabeto, grego e hebraico, A e Z, Alfa e Ômega, e Aleph e Tau. Significa, pois, o princípio e o fim de todas as coisas, o elemento primordial de que todas as coisas procedem e ao qual todas as coisas voltam. Em alquimia, é a luz-princípio de todas as formas. É o Absoluto.” — Nota no livro Dogma e Ritual de Alta Magia

Diz ele ainda que Azoth, este grande agente mágico, é o equivalente alquímico para o que se chama de luz astral, uma “força oculta, única e incontestável que é a chave de todos os impérios, o segredo de todos os poderes (…)”.

Não creio que o arcano d’A Força represente toda a complexidade e grandiosidade que o conceito de Azoth abarca, porém desconfio que a integração implícita em seu simbolismo seja indispensável para que se conquiste aquela harmonia universal pela união de opostos que nos permite conhecer e dirigir nossas própria correntes internas, rumo à totalidade almejada e representada por Azoth.

Traçar um paralelo entre o arcano XI e Mercúrio me soou estranho a princípio, mas me dou licença poética para isso, já que essas reflexões são um exercício de associação livre. Quando Mercúrio, o trickster, vaga indomado pelo mundo, sua natureza selvagem (o leão) dá vazão ao caráter destrutivo da imaginação, provocando efeitos terríveis sobre o mundo. Ao contrário, em sua forma purificada e “contida”, ou antes integrada com a consciência (a mulher), é capaz de transformar qualquer metal vil em ouro.

Curiosamente, tanto a imagem de Azoth quanto os arcanos d’A Força e O Mago (associado a Mercúrio), no baralho de Marselha, trazem o símbolo do Infinito. Em ambas as cartas, sua forma é sugerida nos chapéus que as figuras usam.

Depois de passar alguns dias refletindo sobre esta carta e já tendo concluído minhas anotações, percebi que não conseguia seguir em frente. A Força sempre voltava à minha mente, especificamente sua versão no Tarot de Thoth, que é denominada Volúpia.

Volúpia, Tarot de Thoth

Essa representação d’A Volúpia/Força demonstra o ser que, tendo conquistado o equilíbrio entre espírito e matéria, dispõe de todos os prazeres da matéria sem que isso o leve para uma situação de desequilíbrio, ainda que a existência seja puro deleite e êxtase.

“Existe um véu; aquele véu é negro. É o véu da mulher modesta; e o véu de sofrimento, & o manto de morte: isto nenhum é de me. Rasgai abaixo aquele mentiroso espectro dos séculos: não veleis vossos vícios em palavras virtuosas: estes vícios são meu serviço; vós fazeis bem, & Eu vos recompensarei aqui e no além”. — Liber Legis, cap. II versículo 52

Ao mesmo tempo em que a mulher se posiciona de uma forma lasciva sobre o leão, ela toca o que parece ser um útero no topo da imagem e, acima dele, inúmeras cobras em direção a um mesmo ponto me remetem à fecundação do óvulo. Abaixo do leão e da mulher, diversos rostos que podem muito bem ser todas as máscaras de personalidade que utilizamos enquanto tentamos viver não de acordo com nossa natureza, mas em favor de uma moralidade ultrapassada.

A Volúpia do tarot de Thoth não tem medo do seu próprio prazer carnal e dos aspectos mais viscerais da matéria, pois não são pecados dos quais ela deva se envergonhar. Ao contrário, é tornando sagrado cada aspecto da vida na carne que a porção mais superior da nossa individualidade torna-se fecunda, ativa e criativa. É a força daqueles que têm coragem de viver sem procurar o tempo todo negar sua própria humanidade.

Encerro estas reflexões com uma citação de Alejandro Jodorowsky que transmite de forma muito bonita a potência do Arcano XI:

“Eu estava esperando por você. Sou o início do novo ciclo, e depois de tudo aquilo que você realizou, você não poderia viver se não me encontrasse. Vou lhe ensinar a vencer o medo: comigo você estará disposto a ver tudo, a entender tudo, a tocar em tudo. Os sentidos não têm limites, mas a moral é feita de medos. Vou lhe fazer ver o imenso pântano das suas pulsões, tanto as sublimes quanto as tenebrosas. Sou a força obscura que sobe dentro de você em direção à luz”. — O Caminho do Tarot, Alejandro Jodorowsky

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Soror S.872
Imprimatur

“Beleza e força, riso pulante e langor delicioso, força e fogo, são de nós.”