Um ensaio sobre o Caminho do Guerreiro Moderno

Fr. L.45
Imprimatur
Published in
11 min readAug 3, 2021
Militares da 3ª Companhia de Forças Especias (Manaus/MA). Fonte: Relações Publicas/Exército Brasileiro

Dedico esse trabalho a todos aqueles que derramaram seu sangue em prol de um ideal maior, suas guerras não foram em vão. — Fr. L.V.G.V.45

INTRODUÇÃO

“Aos homens comuns, missões comuns”

Fui um adolescente sedentário. A atividade física nunca esteve atrelada a minha vida. Tirando as aulas de natação que fiz por uma questão de segurança quando era mais novo, nunca fui de jogar futebol ou de praticar outros esportes. Essa minha recusa chegou ao ponto de quase ter sido reprovado na disciplina quando cursava a antiga 8ª série do ensino fundamental (hoje chamado de 9º ano). Digo isso para que o leitor tenha em mente que nunca fui uma pessoa afeita a prática física e que, devido a circunstancias fora de meu controle, muitas vezes fui colocado em situações que me fizeram ir ao extremo, além daquilo que pode ser considerado normal para uma pessoa com o meu histórico.

Existe no ocidente, um fascínio enorme por aquilo que transcende a matéria em termos de prática mágica. Esperamos por manifestações físicas da magia sim, mas na maioria das vezes, essa manifestação parece sempre transcender esse plano de alguma forma, tendo como pano de fundo um ato numinoso como catalisador daquele evento. Caímos em armadilhas maiores ainda ao tentar explicar tais eventos, descrevendo-os através de definições cíclicas que só fazem sentido quando colocadas em conjunto. Crowley sabiamente apontou essa dificuldade ao apontar que “todo nosso conhecimento não é um exemplo desta falácia de explicar uma incógnita por outra, e então cacarejar como o galo de Pedro?”.

O que estou dizendo, meu caro leitor, é que, por mais que você consiga ver um anjo do antigo-testamento voando dentro do teu quarto enquanto executa um ritual magico, dificilmente conseguirá explicar aquilo de forma lógica sem ter que recorrer a um, dois ou mais termos que só vão fazer sentido dentro do contexto geral da experiência. Isso caso você consiga descrever a mesma de forma minimamente coerente.

Porém existe toda uma gama de experiências que coabitam o campo daquilo que transcende o explicável e que, diferente da magia, possui resultados extremamente claros, precisos e facilmente verificáveis, sem a possibilidade de dubiedade semântica em suas instruções, demonstrações ou explicações. Esse campo fértil é o mais perfeito veículo de manifestação da natureza e está tão longe de você como as colunas de um templo estão de seu fundamento ou de seu teto. Seu templo pessoal, a mais intima das moradas: o seu próprio corpo físico.

Aqueles com uma visão mais aguçada já devem estar prevendo aquilo que quero propor nesse texto. Muitos são aqueles atletas, artistas marciais, guerreiros, faquires, yoguis, etc, que no refinamento de suas artes, encontraram um caminho para a paz ou verdade interior. A parte de todos os problemas do mundo, diversos homens e mulheres conseguiram atingir um nível de auto conhecimento diferenciado ao tratarem seus corpos como ferramentas para a realização do improvável.

A grande questão que paira é: por que consideramos um grande feito mágico realizar uma operação mágica bem-sucedida para algo trivial como “conseguir dinheiro”, mas ignoramos completamente o ato mágico realizado por Usain Bolt ao correr 100m em 9.58s em 16 de agosto de 2009? Se lhe restam dúvidas se isso é ou não um ato mágico, faça o seguinte: treine por 5 anos e tente realizar o mesmo feito. Depois treine por 10 anos, fracasse, então admita o milagre.

Como falei antes, nunca fui adepto das práticas de atividade física, até que, por ação do destino, me vi aprovado em um concurso das forças armadas e uma nova dimensão de experiências me foi introduzida. O que proponho aqui é um paralelo entre aquilo que pode ser considerado parte do ensinamento magico e a atividade que tomei como expressão da minha vida e, subsequentemente, como expressão da minha Obra.

A ORIGEM DAS TROPAS ESPECIAIS

“Tragam-me seus melhores homens”

É correto falar que diversos autores ao longo dos anos correlacionaram as tarefas da esfinge com a realização de feitos físicos excepcionais relacionados aos elementos: para dominar o fogo seria necessário explorar as crateras de um vulcão; para dominar o ar, deveria sobreviver a um furacão; para dominar a terra, escalar uma montanha e; para a água, sobreviver a um maremoto ou naufrágio. Diversas variações dessas tarefas permeiam mitos de heróis e livros de magia em todas as culturas.

Na antiguidade, diversos povos possuíam testes para selecionar seus homens mais aptos. Tais ritos podiam servir como demarcações de início da fase adulta ou como rituais de passagens para aqueles que queriam se tornar especiais. Uma coisa interessante a notar sobre tais eventos é que, na maioria das vezes, a seleção era realizada para compor grupos especializados de caça, e não de combate. Acontece que as habilidades cultivadas pelos grupos de caça — tais quais o uso de armas, conhecimento de sobrevivência, camuflagem, primeiros socorros, rastreamento e contra rastreamento — eram as mesmas habilidades requeridas para se ter êxito no combate. Dessa forma, a atividade vital de caça se conecta desde tempos pré-históricos com a atividade vital de defesa.

Porém, embora a defesa da tribo fosse considerada uma atividade vital, ela era um subproduto do aperfeiçoamento das práticas de combate à fome. Apenas com a passagem das culturas coletoras/caçadoras para a cultura da agricultura/pecuária que começamos a ter os primeiros guerreiros treinados apenas para o âmbito da guerra, excluindo a atividade primaria de caça (que agora passa a ser considerada como ação recreativa destinada justamente aos nobres e guerreiros). Essa transposição também delimita a passagem de um sistema matriarcal para um sistema patriarcal, à medida que o advento dos exércitos modernos tem como principal função a manutenção da propriedade privada (sendo o Estado Moderno um aglomerado de propriedades privadas que pertencem a pessoas que respeitam um código de leis e estão sobre a baqueta de um governo comum a todos).

Nesse sentido, em sua origem, a Arte da Guerra deriva diretamente da Arte da Caça. A guerra é uma necessidade instintiva tão latente quanto a fome. Porém, aquilo que antes era posto em primeiro lugar, a saber, o combate contra a fome na figura do caçador tribal, foi regalado a um papel coadjuvante à medida que as plantações e rebanhos tornaram esse combate inútil. Não era mais preciso caçar para viver. O Grande Inimigo havia sido vencido.

Com a vida se tornando mais cômoda com o advento da tecnologia de cultivo, tornava-se cada vez mais latente também a manutenção das fronteiras entre as tribos. Longe dos tratados atuais, essas fronteiras eram extremamente nebulosas, o que fazia com que sua manutenção fosse realizada por meio do uso da força. Ter acesso aos melhores pastos, a terras mais férteis, acesso a rios e oceanos, eram todos fatores de sucesso para uma sociedade. Manutenir tais áreas era necessário para o sucesso da tribo.

É nesse momento que os conhecimentos implícitos da Arte da Guerra se conectam novamente com a ideia de manutenção da vida através da comida. Os primeiros grupos de guerreiros especiais, destinados unicamente ao combate, nasceram de uma evolução do método de manutenção da disponibilidade da comida. Antes caçavam a comida diretamente, depois passaram a proteger sua produção e o domínio das áreas mais propicias a sua produção.

Na era moderna, onde o capital corre por caminhos obscuros e a informação possui um valor maior do que o próprio dinheiro, as tropas especiais, como instrumentos de guerra, mantém as mesmas características em sua essência. Pois em suma, grande parte do argumento para a guerra baseado na “defesa da liberdade”, “na defesa da economia”, “na implementação da democracia”, etc, é um argumento em prol da manutenção da capacidade daquela nação de manter seus cidadãos alimentados, bem cuidados, saudáveis. Se não for para alimentar a si, que fosse para permitir que aqueles que estavam sob o julgo inimigo tivessem acesso a comida. Basta ver a constante propaganda americana que associa o socialismo/comunismo com a fome. O inimigo passa fome, o inimigo é a própria ideia da fome, da miséria.

AS OPERAÇÕES ESPECIAIS E OS QUATRO PODERES DA ESFINGE

“O ideal como motivação, a abnegação como rotina, o perigo como irmão e a morte como companheira”

Ousar, Querer, Saber, Calar. Esses quatro verbos que definem os quatro poderes (e as quatro tarefas) da esfinge, representam por excelência as características necessárias para aqueles que desejam integrar as Forças Especiais modernas.

Por excelência, as chamadas Ações de Comandos são atividades que demandam extrema ousadia e coragem. Eu costumo dizer que destemor e coragem são coisas diferentes. O destemor é a ausência de medo, já a coragem implica em fazer o que tem que ser feito mesmo com o medo batendo a porta(“Tá com medo? Vai com medo mesmo!”). O destemido normalmente morre, o corajoso consegue julgar suas ações a luz das consequências. Nenhum ato justifica a morte de um guerreiro em combate, os fatores humanos devem ser sempre priorizados acima dos fatores materiais, e nesse ponto, o destemor é um inimigo.

A ousadia é aquilo que faz o corajoso vencer o seu medo, suplanta-lo e domina-lo, sendo a mesma uma característica de todos os Operadores de Forças Especiais modernos. É o ousar fazer, mesmo estando para além de qualquer possibilidade. A ousadia é o que permite gritar em alto e bom som, sem permitir que se trema o timbre em vacilação: Fé na Missão!

Mas não basta ousadia, é necessário querer. Os grupos de forças especiais são compostos unicamente por indivíduos voluntários. Esses homens são testados de forma efetiva nas áreas física, mental e emocional. Esses treinamentos permitem ao guerreiro desenvolver um profundo conhecimento sobre os limites do seu corpo e da sua mente. Dias sem dormir, dias sem comer, dias andando distancias impossíveis, sobrevivendo apenas do ideal do cumprimento da missão, faz com que esses guerreiros saibam exatamente que são capazes de realizar tais atos quando a missão assim necessitar. Mas para fazer isso, é necessário querer, é necessária uma vontade tal que seja capaz de transpor os limites que o corpo teima em dizer que existem.

Um exemplo desse querer pode ser dado através de um exemplo pessoal: em uma missão especifica designada a minha equipe, tivemos que realizar uma exfiltração forçada em área de selva. Todos os homens, incluindo eu, carregávamos cerca de quarenta e cinco a cinquenta quilos de equipamentos e armamentos. Teríamos que realizar uma marcha através de linha seca por uma distância de quatorze quilômetros. Para tal, tínhamos cerca de quatro horas para chegar ao local antes de perdemos o apoio aéreo por conta das condições de luminosidade. A missão era fisicamente impossível de ser realizada, porém, através do incentivo mutuo e tendo em vista um profundo sentimento de cumprimento de missão por todos os homens envolvidos, conseguimos realizar o deslocamento em tempo recorde e fomos todos exfiltrados com segurança.

Porém não basta querer, é necessário saber. Compostas por efetivo especializado, as tropas especiais não recebem esse nome à toa. Todos seus membros são indivíduos com altíssimo grau de instrução profissional, extremamente treinados e especializados, com conhecimentos sobre diversas áreas (mesmo aquelas que não tangem a área do combate, como dramaturgia, literatura, línguas, filosofia,etc). Mais do que isso, seu extremo treinamento permite ao indivíduo um grau de auto conhecimento pessoal que permite que ele seja capaz de reproduzir proezas físicas pouco prováveis, dado o fato de estar corretamente alinhado com a trípode desse esquema de verbos: ele ousa fazer aquilo, ele quer fazer aquilo, ele sabe como fazer aquilo.

Ao levar o indivíduo ao extremo, através de instruções especificas com alto grau de controle do espectro fisiológico, é possível criar nele uma memória muscular que permitirá que ele consiga realizar tarefas de extrema complexidade, mesmo estando nos limites de sua condição física. Essas instruções permitem que tais homens consigam entender que os limites que aparentemente se aventam como reais frente as limitações de seus corpos, podem ser transcendidos levando em conta o próprio conhecimento prévio das superações realizadas em ambiente controlado. Caso eu nunca tivesse realizado uma atividade parecida como aquela exfiltração em um exercício, como poderia eu saber que aquilo era possível de ser realizado? Em outras palavras: treino difícil, combate fácil.

E por fim: o sigilo é a cora da obra. Aprender a calar-se na vitória é ter o domínio do limiar do retorno na alegoria da Jornada do Herói. A missão de forças especiais que chega ao conhecimento público é a missão que deu errado. Calar-se diante da vitória final é uma característica daqueles que lutaram um bom combate. Calar-se diante do sucesso, do êxito, é uma proeza para poucos homens. É respeitar o seu inimigo como um oponente valoroso. A isso se associa diversas homenagens póstumas feitas a inimigos abatidos, como o túmulo dos três heróis da FEB, feito por militares alemães em 1945, ao reconhecerem a garra com que os três brasileiros enfrentaram uma divisão alemã com 100 homens, enquanto realizavam uma patrulha na região de Montese.

Em algumas culturas nativas da américa latina, esse respeito ao guerreiro morto era levado a um extremo tão grande, que os inimigos mais fortes, mais valentes e poderosos eram devorados pelos integrantes da tribo vitoriosa após sua derrota. De uma forma ou de outra, segundo as crenças daqueles povos, as características daquele ser continuariam vivendo naqueles que se alimentaram de sua carne, através de uma espécie de transferência. Ao guerreiro abatido, servir de alimento para seus oponentes era uma honra, a vergonha estava justamente em demonstrar medo diante da morte e se recusar a ser devorado. Taís traços foram observados com maiores detalhes dentro da etnia Tupinambá, porém não era exclusiva dela.

Em contrapartida, grupos combatentes que não levavam/levam a sério o respeito pelos mortos e inimigos abatidos, foram considerados bárbaros na antiguidade e terroristas hoje em dia, a violação do cadáver de um guerreiro e vista de forma hedionda por qualquer um daqueles que se consideram guerreiros. Os direitos de prisioneiros de guerra são tão antigos que já estavam previstos no Código de Hamurabi, que incluía até mesmo proteção social para a mulher de um oficial ou soldado morto em combate e regras do que se fazer com guerreiros que eram resgatados ou presos em situação de combate.

O CAMINHO DO GUERREIRO (MODERNO?)

“As pessoas dormem pacificamente em suas camas à noite só porque homens ásperos estão prontos para praticar violência em seu nome.” — George Orwell.

Obviamente, é impossível extinguir o assunto nas poucas palavras de um ensaio, sendo necessário aprofundar certas ideias através de uma lupa maior. Porém, esse trabalho introduz uma dimensão ainda pouco conhecida sobre o aquilo que posso definir como o Caminho do Guerreiro Moderno. Também traz uma perspectiva incomoda sobre a Obra Mágica na medida em que ela se associa a um campo totalmente diferente das estantes empoeiradas dos apartamentos dos magistas atuais.

Porém, essa aparente distância entre a Arte Mágica e a Arte da Guerra é um produto da modernidade e sua constante distanciação do sagrado. Ao longo da história, diversas sociedades se empenharam no desenvolvimento das técnicas destinadas a morte como uma parte do processo místico/mágico, tais quais Hashasin, que deram origem ao termo assassino.

A guerra continua sendo, em todos os casos, uma luta pela satisfação das necessidades de alimento ou subsistência do homem, pelo menos em seus argumentos mais simplistas. De qualquer forma, não é trabalho nem desejo desse autor romantizar as atrocidades cometidas no combate como sendo algo valoroso, nem mesmo reduzir os aspectos de estudo da arte da guerra a pura necessidade de suprimento daqueles que a utilizam como ferramenta. Antes disso, é apenas uma outra forma de encarar e entender um determinado problema que, embora seja considerado nocivo, apresenta-se recorrentemente como uma expressão daquilo que chamamos de humanidade.

BIBLIOGRAFIA

● BELL, R.; Cannibalism: The Ancient Taboo in Modern Times; Disponível em: <http://www.trutv.com/library/crime/criminal_mind/psychology/cannibalism/index.html>; acessado em: 15/05/2021

Código de Hamurabi; Disponível em: <http://www4.policiamilitar.sp.gov.br/unidades/dpcdh/Normas_Direitos_Humanos/C %C3%93DIGO%20DE%20HAMURABI.pdf>, Acessado em: 16/05/2021

● CROWLEY, A.; O Soldado e o Corcunda: O ! e o ?; Disponivel em: <https://www.hadnu.org/publicacoes/o-soldado-e-o-corcunda-e/#main-content>; acessado em: 17/05/2021

● DUNNIGAN, J. F.; Ações de Comandos; Biblioteca do Exército — 2009.

● ENGELS, F.; Origem da Familia, da Sociedade Privada e do Estado; Boi Tempo — 2019

● RIGONI, C. L.; La Forza Di Spedizione Brasiliana (FEB) — Memória e História: Marcos na Monumentalística Italiana; Universidade Federal do Paraná — 2003

● SANTIAGO, E.; Antropologia; Disponivel em: <https://www.infoescola.com/sociedade/antropofagia/>; acessado em: 14/05/2021

World Athletics Records; Disponivel em: <https://www.worldathletics.org/records/by-discipline/sprints/100-metres/outdoor/men>; acessado em: 21/05/2021

--

--