A ÚLTIMA PALAVRA DE R. FRANCO
Há 12 anos R. Franco não publica nada, nem livro, nem coluna em jornal, nada. Não posta sequer um caractere nas suas redes sociais, que são todas vazias — não segue ninguém e é seguida por milhões. Não fossem suas aparições na vida cotidiana (ir em um restaurante, comprar roupas, visitar um café, passear com o vira-lata Pipo etc.) poderia se supor por aí que ela não existe mais. Há 12 anos ela lançou seu último livro, As filhas dos homens, que, como em todas as suas narrativas, possui apenas personagens masculinos e deixou todo mundo de cabelo em pé por causa do título. As filhas dos homens levou Jabuti, Camões, Oceanos, tudo o que é prêmio de língua portuguesa. Somado aos outros nove livros que R. Franco escreveu, fortaleceu uma obra que atingiu o delicado equilíbrio entre sucesso absoluto de público e sucesso absoluto de crítica. Passou a ser rotineiramente indicada ao Nobel pelos especialistas brasileiros e ano após ano surge a expectativa: será dessa vez?, como um Murakami de talento superior.
Desde As filhas dos homens não se tem notícia de uma palavra sequer escrita por R. Franco. Toda vez que ela põe os pés na rua alguém pergunta: está trabalhando em algo? E ela diz: não, não estou, mas obrigada pela preocupação. O subreddit dedicado a ela, em língua portuguesa, espanhola e inglesa, possui uma infinidade de threads com teorias da conspiração. Alguns afirmam que ela está, sim, escrevendo um livro final. Outros, que ela não consegue mais escrever. E tem a corrente forte que diz que R. Franco simplesmente enlouqueceu. A editora que publicou todos os seus livros até o momento tentou, no início, incentivar a escritora. Bônus, adiantamento de direitos do autor, a coisa toda. A resposta era sempre: não, mas obrigada pela preocupação. Desistiram. Quando for a hora, será a hora, o editor costuma dizer.
O que é que faz essa multidão de gente continuar se interessando pela escritora que não escreve mais? Os seis milhões e meios de seguidores em seu perfil oficial no Instagram, com zero postagens e zero seguidos, cuja foto de perfil não é R. Franco, mas o vira-lata Pipo.
A escritora em si? Ela é uma senhora de cabelo cinza e baixa estatura, com óculos pequenininhos sobre o nariz, e quando era jovem já não parecia jovem. O primeiro dos 10 livros lançados, Testamento, foi escrito quando ela tinha vinte e três anos e quase não saiu da gaveta. Uma mulherzinha de vinte e três anos que assina R. Franco escrevendo um romance de seiscentas e quarenta e cinco páginas em que todos os personagens são homens, e ainda por cima uma mulherzinha das mais sem graça. Ela entregou o manuscrito na editora para uma mocinha de mesma idade, que ficava na recepção, e a mocinha perguntou: quem é o autor? E ela disse: sou eu. E a mocinha deu de ombros e disse que entrariam em contato, e R. Franco respondeu: não importa, mas obrigada pela preocupação.
Ao menos essa é a história que o editor gosta de contar.
A escritora brilhante que parece não se importar com nada do que escreve após estar escrito. Isso foi ela mesmo quem disse em uma das suas raras entrevistas: eu não me importo com a crítica, o que não quer dizer que eu não aprecie os elogios e as gentilezas e até as grosserias, mas eu não me importo, porque depois que eu escrevo, o que está escrito já está tão distante de mim que é como se me fosse completamente estranho.
Por que todos os personagens são homens? A crítica tem várias sugestões e R. Franco, quando perguntada, sempre diz: porque é assim que eu escrevi.
R. Franco parece dissociada do próprio tempo em que vive. Dissociada da era global, do contemporâneo, apesar de ser sempre colocada no topo da lista da literatura contemporânea pelas suas estratégias metanarrativas, pela índole reflexiva, pela subversão em construir universos puramente masculinos. É como uma figura atemporal. Dissociada do presente, do passado e do futuro.
Estamos conjecturando, tentando encontrar explicações enquanto ela continua sem escrever, que é o que nos resta.
O que faz uma escritora como R. Franco, que já não escreve mais?
Aos vinte e cinco, quando Testamento já havia se tornado leitura obrigatória na crítica, ela se casou com o filho do dono do escritório de contabilidade que cuidava das suas finanças. Alamiro Franco, cujo nome de batismo é Alamiro da Cruz, seguiu os passos do pai e se formou em contabilidade, herdando o escritório. Adotou o sobrenome da esposa tardiamente, na mesma época em que decidiu se desfazer do escritório para ser um marido-do-lar. Isso foi depois do lançamento do segundo livro de R. Franco, Matrimônio. Eles já tinham o primeiro de três filhos, um menino. Para escrever Matrimônio R. Franco deixava o garotinho no berço ao lado da máquina de escrever, pois, por sorte, a criança adormecia com o barulho das teclas, e precisava parar cada vez que o choro começava. A crítica se perguntava: o ritmo inédito desse livro está associado ao ritmo da escrita de uma mãe que cuida do filho recém-nascido? Alguém precisaria ceder e Alamiro cedeu. Sua contrapartida foi, dali em diante, gerenciar a carreira da esposa, cuidar das finanças, dos impostos, enfim, resolver toda burocracia, ter o controle nas mãos, enquanto R. Franco se dedicava única e exclusivamente à escrita. Alamiro ganhava o direito de experimentar o sucesso do talento que não era seu, com um sobrenome que não era seu.
Vieram mais oito livros e duas crianças. O do meio, outro menino, e a mais nova, uma garotinha.
O mais velho dos três é professor universitário de literatura brasileira.
O do meio cuida da Fundação R. Franco, ideia do pai.
A mais nova é ela própria uma escritora, mas não de ficção, e sim ensaísta, que assina com o sobrenome do pai: Rita da Cruz.
Desde que parou de escrever, R. Franco colabora com os filhos. O mais velho tenta há anos convencê-la a dar uma aula inaugural na universidade, o que ela sempre rejeita, limitando-se a fazer apontamentos sobre uma ou outra questão trabalhada pelo filho em sala de aula. Palpita nos ensaios da filha, quando requisitada. Aprova ou veta novas iniciativas do filho do meio em relação à Fundação.
Tudo isso, no entanto, pelo português falado. Tem um e-mail e tem um celular. Todo e-mail é respondido com uma ligação, toda mensagem é respondida com um áudio. A caixa de saída do gmail é vazia.
Não escreve nada. Nadinha.
Como se todas as palavras que ela pudesse escrever já tivessem sido escritas, estão esgotadas, é preciso reconhecer o fim.
Por isso o comunicado que foi divulgado pela editora deixou todo mundo em polvorosa excitação:
“R. Franco escreverá seu último livro”, é o título. E o conteúdo é sintético:
“Temos o prazer de anunciar que a escritora R. Franco, o maior nome da literatura contemporânea de língua portuguesa, está trabalhando ativamente naquele que será o seu último trabalho narrativo”.
Não é preciso dizer que as DMs do perfil oficial da autora no Instagram receberam uma avalanche de mensagens, todas não visualizadas e sem resposta. O subreddit entrou em parafuso e os moderadores quase enlouqueceram. O próprio Alamiro não sabia bem o que fazer, pois a esposa não explicava no que estava trabalhando. Ela pediu: avise à editora, meu bem, que eu entregarei as minhas últimas palavras. E ele perguntou: e no que você está pensando? E ela respondeu: não se preocupe.
Como responsável pela carreira e pela imagem da esposa, ele contatou a editora. Informou à imprensa. Avisou aos críticos.
Todos ficaram de prontidão.
A qualquer momento, R. Franco colocaria um ponto final na sua grandiosa obra.
Um mês.
Dois meses.
Três meses.
No quarto já não havia mais imprensa em volta da casa em que ela morava.
No quinto o subreddit tinha no máximo duas postagens por dia.
No sexto o perfil oficial no Instagram desapareceu.
E no sétimo mês a espera acabou.
R. Franco saiu de casa de manhãzinha, depois de tomar café com o marido. Ligou para os filhos. Beijou a cabeça do vira-lata Pipo. Ao sair de casa ela carregava uma pasta preta. Entrou no táxi. Falou para o taxista o endereço da editora. Lá chegando, entregou a ele o valor do taxímetro e mais de vinte reais. Ele disse Deus abençoe a senhora, e ela disse Amém.
A mocinha da recepção, outra mocinha, a mesma mocinha, reconheceu de imediato a figura de R. Franco. Levantou-se. Disse que ia chamar o editor. R. Franco disse que não era necessário. A senhora quer um café? Não se preocupe. Uma água? Não se preocupe. Quer se sentar? Não se preocupe, querida, eu só vim entregar isso aqui.
Deu nas mãos da mocinha a pasta preta, disse “ele vai saber do que se trata”, e se despediu.
Quando abriu a pasta e pegou o papel na mão, o editor não soube como reagir. Quando a imprensa teve acesso ao conteúdo da pasta, não soube como reagir. Quando os críticos leram o que estava no papel, não souberam como reagir. O subreddit ficou em absoluto silêncio.
O último trabalho. O fim da obra. Enfim uma personagem feminina.
O título era A ÚILTIMA PALAVRA DE R. FRANCO.
E o texto? Uma só palavra, precedida de um travessão.
— Adeus.
A partir desse momento, junto com o ponto final R. Franco se esgotou no ar e desapareceu no silêncio absoluto.