A despedida na casa de campo

Alexandre Brandão
impublicável.
5 min readApr 13, 2024

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Photo by Valery Tenevoy on Unsplash

Caía uma chuva fina e eles estavam sentados nos bancos de madeira na varanda da casa de campo. Bebiam uísque e cerveja e fumavam um par de charutos antigos que encontraram na gaveta do aparador do segundo andar, dentro de uma caixa metálica um pouco enferrujada. Havia uma goteira em algum lugar e ela fazia plim, plim, plim, plim, mas nenhum dos quatro parecia se incomodar. Os dois homens encaravam os próprios pés e as duas mulheres observavam a fumaça dos charutos subir em direção às telhas vermelhas.

Ninguém vai dizer nada?, Elisa falou e entornou o resto do Jack Daniel’s e sentiu a garganta queimar. Ninguém?

Leandro sacudiu a cabeça.

O que quer que a gente fale?, disse.

Eles merecem alguma coisa, Pedro falou. Algum reconhecimento.

Sempre isso, Leandro falou. Não aguento mais.

Ele está certo, Luiza disse.

Pelo que, Pedro?, Leandro disse. Hein? Que eu me lembre nenhum dos dois deu a mínima para nós assim que tivemos idade o suficiente para botar um pé fora de casa.

Mesmo assim, Elisa falou, eram nossos pais.

Você sempre foi a mais madura, não é Elisa?

Não começa, Leandro. Eu…

Sempre foi a favorita de mamãe. Sempre foi a garotinha dos olhos de papai. A mais velha. A que tinha tudo que queria. A que…

Cala a boca, porra!, Elisa gritou e os três viraram-se para ela e viram as lágrimas molhando suas bochechas vermelhas e os olhos injetados de raiva. Ah, ela era boa. A melhor. Elisa puxou a fumaça do charuto e disse: Fui a primeira que mandaram pra rua, não lembra? Eu tinha quinze anos. Comemoraram meu aniversário e meu presente foi encontrar minha mala arrumada na porta do quarto no dia seguinte.

Ela sacudiu a cabeça e se levantou e buscou a garrafa de uísque e encheu o próprio copo. Bebeu devagar e encheu de novo.

Eles eram assim, falou. Achavam que estavam nos ensinando alguma lição. Ela sorriu, amarga. Achavam que estavam nos preparando para a vida.

Dois babacas, Luíza falou e todos se viraram para ela. Dois filhos da puta babacas. Mas a Eli tem um ponto. Eles não deixam de ser nossos pais, mesmo depois de tudo que fizeram.

Ai, ai, Pedro falou e abaixou a cabeça e a cobriu com as mãos.

Não disseram nada por um tempo. A chuva apertou e o plim, plim, plim, plim disparou. O vento soprava e os galhos das árvores acenavam um adeus da encosta da serra ao lado da casa de campo. Os pisos de madeira gemiam, gritavam e davam a impressão de que um grupo agitado de fantasmas habitava o lugar.

Talvez eles ainda estejam por aí, Leandro sussurrou.

O que disse?, Elisa falou.

Leandro a encarou.

Nada, disse. Só pensei alto.

Pode falar, a irmã mais velha insistiu.

É besteira.

Deixa disso, Leandro.

Ele sorriu.

Eu disse que talvez ainda estejam por aí, falou. Dá pra ouvir os passos dentro de casa como nos velhos tempos. Lembro de um dia que acordei no meio da noite com um galho batendo na janela do quarto.

Lembro dessa noite, Pedro disse.

Agora sim, Elisa disse.

Chovia demais, Leandro continuou. Muito mais do que hoje. Nossa, aqueles raios manchavam o céu de azul. O barulho… era um barulho terrível, como se o mundo estivesse caindo em nossas cabeças. Eu entrei em pânico e comecei a chorar.

Leandro sacudiu a cabeça e prosseguiu:

Eu acordei o Pedro, Ele também começou a chorar. Mamãe chegou primeiro e pegou Pedro no colo e levou ele para o corredor e começou a cantar uma música de ninar. Depois veio papai. Ele sentou do meu lado. Ele…

Ele sentou do meu lado.

“O que foi, filho?”, disse. “Por que tá chorando?”

Papai passou a mão em meus cabelos e me abraçou e eu parei de chorar. Ficamos alguns minutos assim. Eu não queria falar nada, porque tinha medo de olhar para o lado de fora e ver que a chuva não era assim tão assustadora e parecer só uma criancinha chorona.

Ele ficou ali até eu parar de chorar. Quando saiu, vi que mamãe ainda estava no quarto, ajeitando Pedro na cama.

Mas eu não disse nada, Leandro continuou, porque queria que papai continuasse perto de mim. Não queria que ele fosse embora.

Leandro usou o indicador para pegar uma lágrima solitária que escorria pela bochecha.

E agora ele foi embora, disse. Ele e mamãe foram juntos. E nunca mais vão voltar. Faz parte da vida. Isso foi bom o suficiente pra você, Elisa?

Sim, Elisa falou.

Pra mim, também, Pedro disse.

Foi ótimo, Luiza concluiu. Agora estamos livres.

Livres?, Leandro perguntou.

Sim, depois desse discurso tão fofo, é hora de botar os corpos debaixo da terra.

Ah, Leandro disse, vocês duas são sempre tão dramáticas.

Queria enterrar dois desconhecidos?, Elisa falou. É sempre assim pra você, Leandro. Onde está a graça disso tudo?

Ele sorriu e bebeu o resto do uísque no copo e puxou a fumaça do charuto enquanto se levantava.

No terror, Leandro disse. No medo pulsando por trás das pupilas quando descobrem que não tem mais saída. Que esse é o fim. Que chegou a hora de partir para outro lugar.

Isso é chato, Luiza falou. Pensar assim deixaria a gente igual a qualquer outro assassino solto por aí.

Mas não é basicamente o que somos?, Pedro perguntou e todos olharam para ele. Seria melhor aceitar do que ficar criando historinhas para acalmar a nossa consciência.

Elisa riu.

Consciência?, disse. Acha que faço isso por consciência?

Pedro deu de ombros.

Não quero saber seus motivos, disse. Só sei que é uma perda de tempo.

Elisa bufou.

Perda de tempo é…

Chega gente, Luiza disse e também se levantou. Temos outros lares para visitar e esses corpos não vão se enterrar sozinhos.

Mas…

Mas nada, Elisa. Mas nada, você só era a mais velha na história de Leandro.

Tá bom, Elisa disse e pegou a pá e ficou de pé.

Ela encarou o casal caído no chão. Lábios ressecados. Rostos enrugados. Cabelos sem cor. Olhos fechados. Pele pálida. Músculos rígidos. A história de Leandro não servia nem para disfarçar o fedor. Talvez fosse melhor parar com aquela insistência idiota. O trabalho demandava tempo e o tempo passava rápido demais.

Pensando em alguma coisa, Elisa?, Leandro falou.

Ela ergueu os olhos e sentiu que ele lera todos os seus pensamentos. Mas não ficou com raiva. Não, não ficou. Apenas sorriu.

Vamos, disse. Esses não foram os últimos de hoje.

AB — 11/04/2024

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Alexandre Brandão
impublicável.

Às vezes um cigarro é só uma fumaça e uma história é só uma história