A garota de vermelho

Alexandre Brandão
impublicável.
5 min readMar 8, 2024

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Photo by Siora Photography on Unsplash

Ela roía as próprias unhas enquanto encarava as luzes dos carros passando do outro lado da janela do ônibus. Escutava Taylor Swift em um volume que provavelmente a deixaria surda daqui alguns anos.

E sorria. Sim, ela sorria. Porque, embora a vida pudesse feder como merda de cavalo debaixo de um sol forte, ainda guardava suas surpresas felizes. E essas surpresas felizes nem sempre precisavam ser imensamente felizes. Bastavam ser felizes. Bastavam pequenos detalhes. Alguém não disse uma vez que a felicidade estava nos detalhes?

Não? Ela não sabia e não se importava.

E quando fechou os olhos e apoiou a cabeça no vidro e sentiu as vibrações do ônibus viu tudo de novo e seu sorriso se alargou.

Lá estava ela, sentada num dos bancos enferrujados da Praça 7 observando a multidão de pessoas esperando o sinal fechar para atravessar a avenida. Os carros parados, as motos avançando pelos corredores e o cheiro de combustível queimado saindo dos escapamentos.

Então ela notou a garota no meio da multidão. Usava um casaco vermelho grande demais para aquela época do ano. Os cabelos loiros caíam por seus ombros e os olhos verdes brilhavam em sua direção. Quase queimavam sua pele.

A garota no meio da multidão sorriu.

Ela sorriu de volta.

A garota no meio da multidão acenou.

E ela acenou de volta.

E o sinal abriu e a garota sumiu no meio da multidão. Ela saiu do banco e se precipitou pelo centro da praça em direção à avenida. Mas era tarde demais. Não encontraria ninguém, nem mesmo alguém com uma roupa tão vermelha e cabelos tão dourados, no meio de tanta gente.

Mas lá estava a garota. Parada do outro lado da calçada, virada para ela. Com aquele par de olhos esmeralda delineados por uma linha preta que conseguia destacar ainda mais a potência de suas íris.

O sinal ficou verde. Os motores zumbiram. Os carros e as motos avançaram. Os pedestres se acumularam de ambos os lados da calçada. Em algum ponto acima da cabeça de todos eles, um raio iluminou o céu. O azul refletiu nas janelas escuras dos edifícios do centro.

A garota de vermelho não se importou com nada disso e andou em direção à rua movimentada.

Ela prendeu a respiração ao ver a garota andando em direção ao trânsito. Tentou gritar, mas a voz não saiu de seu peito. Devia ser assim, ela pensou, que as pessoas se sentiam quando estavam prestes a presenciar uma cena horrível. O efeito paralisante do temor aplicado diretamente em suas veias.

No entanto, a garota de vermelho conseguiu. De alguma maneira, ela chegou ao outro lado da rua e tocou sua mão e tocou seu rosto e, de repente, nenhuma das duas estava mais sobre a calçada.

Elas flutuavam em algum lugar além do mundo. Pairavam sobre um mar de estrelas coloridas e quentes e felizes. Sim, felizes. Dava para sentir a alegria borbulhando em cada um daqueles astros. Suas cores pintavam um arco-íris em movimento. A beleza arrebatava.

“Você me viu”, disse a garota de vermelho.

“Como não te ver?”, ela respondeu.

“Ninguém me vê. Qual o seu nome?”

“Laura. E o seu?”

A garota de vermelho riu.

“Laura”, ela disse. “Laura. Lau. Ra. É um belo nome, se você quer saber a minha opinião.”

Laura sentiu o rosto corar.

“Você não me disse o seu”, falou.

“Porque não tenho. Ninguém me vê. Não preciso de um nome.”

“É estranho. Mas… mas…”

“Mas faz sentido, não é mesmo? Se ninguém te vê, qual a necessidade de um nome?”

“Sim. Faz sentido. O que é esse lugar?”

“Minha casa.”

“Você mora aqui!? Quem é você?”

“Eu faço parte de um todo. De um grupo de seres que mantém tudo que você conhece e ama de pé. Nós somos os Pilares do Universo.”

“Mas… mas você parece tão… tão humana.”

A garota de vermelho sorriu.

“É como seus olhos me veem. É a única maneira aceitável de você conseguir me ver e não ficar louca. Por isso ninguém mais me enxerga. Todos repelem minha forma real. Fazem isso para se proteger. Eles fazem bem.”

“E por que eu, logo eu, consegui te ver?”

“Não sei, Laura. É só mais uma dessas surpresas do universo. Poucas coisas fazem sentido de verdade. Quase tudo é aleatório. Os seres não aceitam isso porque têm medo. Gostam de se sentir donos de si. Donos de seus destinos. Responsáveis pelas suas vidas. Se soubessem que tudo não passa de um jogo de dados de criaturas superiores, ficariam abalados.” A garota de vermelho arregalou os olhos. “Talvez eu tenha falado um pouco demais. Vamos esquecer isso.”

A garota estalou os dedos.

“Esquecer o quê? Que você é um dos Pilares do Universo? Eu jamais vou me esquecer disso”, Laura falou.

“Sim”, disse a garota de vermelho. “Tenho certeza que vai se lembrar para sempre.”

“Como é viver aqui?”, Laura disse.

“Bem, pra mim é normal. Essas estrelas são para mim o que os prédios e as casas de seu mundo são para você. A escuridão é o quintal da minha casa. As bordas do universo, minhas paredes. Fantástico para mim é ver o oceano avançando sobre a areia da praia. Ver os peixes nadando. Ver os carros e as motos e as pessoas. Isso aqui para mim é normal.”

Laura sorriu.

“Acho que faz sentido”, disse.

“Não faz? Acho melhor você ir.”

“Mas já?”

“O tempo corre de formas diferentes em lugares diferentes. Não vamos brincar com ele. Pode ser que a gente perca.”

Laura pensou em alguma forma de argumentar contra aquilo, mas nada parecia bom o bastante.

“Certo”, falou. “Pode me levar de volta.”

Ela sentiu as mãos quentes da garota de vermelho tocarem seu rosto e o puxarem em direção ao dela. Encarou o par de esmeraldas. Sentiu o toque do cabelo dourado, soprado em direção à sua testa. Sentiu o toque quente dos lábios vermelhos e a língua invadindo sua boca.

Então tudo apagou.

Ela estava no ônibus. Taylor Swift cantava alto em seus ouvidos — alguma coisa sobre uma história de amor. Os carros e as motos disputavam espaço ao lado do ônibus. E ela encarou as luzes dos faróis e entendeu como aquilo podia ser realmente fantástico.

AB — 05/03/2024

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Alexandre Brandão
impublicável.

Às vezes um cigarro é só uma fumaça e uma história é só uma história