A varanda, o vento e a ressaca

Alexandre Brandão
impublicável.
3 min readMar 4, 2024

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Photo by Umesh Gopinath on Unsplash

Poucas coisas o alegravam tanto quanto sair de manhã para a varanda de seu apartamento e sentir aquele vento frio soprar sua ressaca para longe. Claro, o vento nunca soprava a ressaca inteira. Apenas um pouco. E às vezes nem isso.

Mesmo assim era bom. Ele repetia esse gesto todas as manhãs depois de virar a madrugada enchendo a cara.

E lá estava ele outra vez. A varanda. O vento. A ressaca. A cabeça latejando. O coração pulsando num ritmo próprio e maluco de início de abstinência. O nariz entupido. As mãos tremendo um pouco.

Bem, elas não faziam isso antes. Talvez fosse o primeiro sinal da velhice. O primeiro de muitos alertas pequenos de que tinha de parar com aquela merda.

O vento soprou e empurrou os pensamentos para longe. Sobrou apenas a luz do sol e The Smiths soando em seus ouvidos — a voz grave e poderosa do filho da puta do Morrissey — e o cigarro aceso queimando a ponta dos dedos.

“Merda”, ele disse e deixou a bituca cair vinte andares.

Torceu para não acertar a cabeça de alguém. Mas logo seu olhar foi atraído para o horizonte, onde um grupo de andorinhas voava sobre a mata fechada margeando as serras. Atrás dos morros, as nuvens formavam um amontoado cinza-escuro. Dava para ver a chuva distante se aproximando. Dava para ver…

“Está aí até agora?”, disse alguém atrás dele.

Ele se virou. Viu uma garota de uns vinte anos e peitos grandes e falsos e cabelos amarelos e falsos. Havia uma mancha branca na ponta do nariz dela. O sorriso era grande e também era falso. Assustador.

“Quem é você?”, ele disse.

Ela riu.

“Não lembra?”, disse.

“Não.”

A garota esticou a mão até o rosto dele e tocou a bochecha com carinho. Os dedos eram longos, as unhas também. Vermelhas. Reluziam da mesma forma que os lábios.

“Que pena”, ela disse. “Todo mundo sempre se lembra de mim.”

“Eu não sou todo mundo”, ele falou.

“Sua mãe disse isso?”

“Não.” Delicadamente, ele afastou a mão da garota. “Os críticos literários. Mas eu sempre achei que eles diziam um monte de bobagens. Talvez estivessem certos. Aqueles desgraçados.”

Ela riu e passou o dorso da mão com força sobre as narinas. A pele branca ficou manchada. Era a mesma cor das unhas e dos lábios. A garota deu de ombros.

“Mil reais para você, querido”, disse.

Ele se lembrava vagamente agora. Passava da meia-noite. O uísque tinha acabado, mas ainda havia cerveja. Esse não era o problema. O problema era o seu nariz. A porra do nariz entupido. Ele procurou por uma drogaria 24 horas no celular. Devia estar louco demais para encontrar. Então ele procurou por alguma outra coisa que sabia que fornecia serviços 24 horas.

E pelo visto encontrou. Ela não tinha dito que era menos?, ele pensou.

E riu.

Quem você quer enganar? De que porra você lembra?

Agora?

Agora!

Agora, bem… nada. Ou quase nada. Lembro de uma ou outra passagem da madrugada.

E depois?

Você sabe.

“Querido?”, ela falou e ele deu um pulinho na varanda. “Quer que os mil reais virem mil e duzentos reais?”

“O quê?”, ele disse.

“Me paga logo, porra.”

“Aceita pix?”

Ela sorriu. Ele preferia que ela não sorrisse.

“Claro.”

Ele pagou. Ela foi embora. Ele continuou na varanda.

O vento soprava. The Smiths cantavam sobre as desgraças da vida. A ressaca continuava. Talvez o vento não ajudasse tanto quanto ele pensava.

O cigarro queimou a ponta de seus dedos outra vez. A bituca despencou vinte andares de novo. Alguém lá embaixo gritou. Ele olhou rapidamente. A puta olhava para cima com uma das mãos na cabeça.

O vento soprou mais forte. Algumas gotas de chuva molharam seu rosto. Ele sorriu. Não devia sorrir por isso, mas sorriu.

Voltou para dentro do apartamento e se jogou na cama. Não demorou a apagar depois de fechar os olhos. Repetiria tudo na manhã seguinte.

A varanda. O vento. A ressaca.

Talvez não chovesse.

AB — 27/02/2024

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