ACERTO DE CONTAS

Lucas, 6:29

Gabriel Schincariol Cavalcante
impublicável.
Published in
6 min readJan 14, 2024

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É melhor tomar cuidado com onde você está pisando para não encher o pé com essa água imunda das poças que se acumulam ao longo do chão, uma lembrança da chuva que passou. Quem desce a escadaria desatento acaba escorregando na umidade dos degraus e, a depender do caso, pode se ver rolando escada abaixo. Na melhor das hipóteses, só vai de um degrau para o outro e o coração acelera com o susto, olha ao redor para saber se ninguém está observando e depois segue o seu caminho.

O sol já toma o céu outra vez, as nuvens vão se abrindo, a chuva acabou. O que resta é a memória empoçada e úmida. Os guarda-chuvas estão fechados. As pessoas andam evitando a água parada e observando os degraus.

No pé da escadaria, três punks. Eles se vestem como punks, os coletes de couro, os cortes de cabelo, os coturnos. São dois homens e uma mulher. Um homem está sentado. Ele não é muito importante. O outro está em pé. De regata, calça preta, coturno. O moicano pintado de verde. A mulher também está em pé. Colete de couro, calça preta, coturno. O cabelo pintado de azul caindo sobre o undercut. Ela e o homem que está em pé se encaram. Ele com as mãos para trás. Ela com as mãos a frente do corpo, os punhos cerrados. Ambos são observados pelo homem que está sentado, menos importante, fumando um cigarro.

No meio da escadaria, a uns nove ou dez degraus dos três punks, dois homens estão sentados sobre toalhinhas. Tênis, calça jeans, camisetas bem passadas, crachás iguais do mesmo lugar de trabalho. Cada um tem nas mãos uma marmita de plástico. Uma marmita tem macarronada com carne moída. A outra tem arroz com frango desfiado. Eles estão sentados lado a lado, separados por uma garrafa de coca-cola de 500ml, e dois copos plásticos pela metade. Estão comendo suas marmitas, observando o movimento do lugar, sob o sol do meio-dia.

Vai, bate, diz o punk que está em pé para a punk que está em pé.

Ela se ajeita, levanta e abaixa os ombros, e acerta um soco na lateral do rosto do seu rosto.

Os homens que estavam comendo param de comer, suspendem os garfos no meio do caminho para a boca.

O punk cambaleia para trás e cai sobre os degraus. O punk menos importante que estava sentado ameaça se levantar, mas o punk que foi esmurrado faz um sinal com as mãos. O punk menos importante permanece sentado. O punk do moicano verde se apoia nos degraus e fica de pé. A punk continua na mesma posição, os punhos cerrados a frente do corpo.

O punk se levanta e limpa o rosto com o antebraço. Cruza as mãos atrás das costas.

Vai, ele diz outra vez.

E recebe um segundo soco na boca, que agora corta o seu lábio. Cai sobre os degraus. O punk menos importante se levanta e ajuda o punk de boca sangrando a se pôr de pé. A punk observa os dois, os punhos cerrados prontos para o terceiro soco.

Os homens que comem suas marmitas olham um para o outro e dão risada. Voltam a comer, a atenção ainda voltada para os três punks no pé da escadaria. Almoço com entretenimento.

A violência é o limite de quase toda a ação.

Se você está disposto a receber um soco na boca, você pode quase tudo. O limite da violência é a morte. Se você sabe discernir uma situação da outra e está disposto a receber um soco na boca, você pode quase tudo. Ou: se você não teme um soco na boca e está disposto a dar um soco na boca de qualquer pessoa, você pode quase tudo.

A resposta certa para uma pergunta sempre varia, a resposta errada, mas invariável, é a violência. Um soco na boca e a questão está encerrada. Um soco na boca e o que antecede perde a importância: tudo o que importa é o soco na boca e o que vem a seguir.

A partir do soco na boca, a discussão acabou. A discussão virou porradaria. E a porradaria acaba ou quando quem está batendo para de bater, ou quando quem está apanhando para de apanhar. O momento em que isso ocorre varia muito.

Depende de quem está batendo e de quem está apanhando. O limite da violência é a morte: se quem está batendo não tem a intenção de parar, a violência encontra o seu limite. A linha é tênue. É difícil para quem está batendo decidir o momento em que a discussão que virou porradaria teve seu desfecho satisfatório. Para quem está apanhando é mais fácil. A dor é um ótimo instrumento guia para esse tipo de situação. Quem está apanhando pode tentar a universal bandeira branca, jogar a toalha, pedir água, o que quer que seja. Pode pedir desculpas, mesmo que não esteja errado ou tenha pelo que se desculpar. A violência inverte o polo da razão, porque deixa de ser sobre quem tem razão para ser sobre quem está batendo e sobre quem está apanhando.

Não adianta muito estar certo quando alguém está chutando a sua cabeça.

Por outro lado, estar errado enquanto esmurra a boca de alguém é muito parecido com estar certo enquanto esmurra a boca de alguém. Em qualquer uma das situações, você está esmurrando e não sendo esmurrado, e no momento da violência essa é a única coisa que importa.

Diz o ditado: o cemitério está cheio de corajosos.

Um melhor ditado seria: o cemitério está cheio de gente com razão.

A razão importa no argumento, a violência é o superargumento que oblitera a razão.

Um soco na boca e a oratória perde sua força. É difícil construir o debate quando está engolindo seu próprio dente.

Por isso a violência é o limite de quase toda ação.

E qual ação levou a essa violência em específico, desse momento, na escadaria?

Ao punk que tem o seu rosto esmurrado pela punk, de maneira aparentemente voluntária?

Sem reação?

O que leva alguém a adotar a posição de quem apanha sem ao menos tentar conquistar a posição de quem bate?

Estivessem eles usando terno e gravata e com os cabelos penteados para trás, poderíamos encontra a resposta no Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas, capitulo 6, versículo 29. Mas a recusa do ódio não parece premissa dos punks, talvez o contrário.

Dar a outra face faz mais sentido na bíblia do que nessa escadaria molhada.

Ainda assim, ele dá a outra face. Depois do primeiro soco que o derrubou, ele deu a outra face. Depois do segundo soco que arrancou um pedaço do seu lábio, ele deu a outra face. Está ficando sem faces para dar, quantos rostos têm um homem para ser esmurrado?

Com a boca sangrando, ele mantém o rosto aberto e as mãos para trás. Vai, pode dar, disse.

Dois policiais no topo da escadaria param para observar. Os homens que comiam suas marmitas continuam olhando o desenrolar da história.

A punk mantém os punhos cerrados a frente do corpo. Sua respiração está pesada, acelerada. Uma reação comum da adrenalina inundando o corpo após bater em alguém. Ela olha para os ossos da mão direita, com a qual acertou duas vezes o rosto do punk de moicano verde. A pele está vermelha e ela sente o seu coração bater na mão. O punk cospe o excesso de sangue no chão. O outro, sem importância, está sentado outra vez.

Já tá bom, ela enfim diz.

Tá bom?, ele pergunta.

Tá bom, ela responde.

Ele estende a mão. Ela estende a mão. Eles se cumprimentam. Ela solta um Ai quando ele apertou a sua mão, e depois chacoalha os dedos para afastar a dor.

Tem que pôr gelo, diz o punk desimportante.

Os dois que estavam em pé se sentam ao lado do terceiro punk. Ela tira um maço de cigarros do bolso e estende na direção do punk de lábio ensanguentado. Ele pega um cigarro e cola na boca, manchando o filtro de vermelho. O punk sem importância também pega um cigarro. Ela pega um cigarro.

O punk sem importância gira o isqueiro, que não acende. Porra, acabou o gás. Olham para cima. Veem os dois homens comendo suas marmitas e, mais acima, os dois policiais. Têm isqueiro?, pergunta o punk para os dois homens. Um deles pega o bic do bolso e joga na direção do punk, que acende seu próprio cigarro e o dos outros dois ao seu lado. Joga o isqueiro de volta para o homem nove ou dez degraus acima. Valeu. Nada.

Fumam em silêncio.

Os homens acabam suas marmitas, tomam a coca-cola e, então, levantam-se, sobem os degraus e somem no horizonte. Os policiais continuaram a ronda.

Não demorou muito até a boca do punk parar de sangrar. A violência é o limite de quase toda ação. O motivo dos dois socos permanece desconhecido, mas agora é também irrelevante.

Estava tudo resolvido, feita a vontade de deus.

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