Foto de Edward Eyer

Aconteceu de novo

Rafael Barbosa
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3 min readMar 8, 2023

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Fez o sinal universal apontando para a garrafa vazia. Com a agilidade de quem domina e executa o ofício há anos, o garçom troca por uma nova. Gelada e vestida de noiva, do jeito que ele gosta. Encheu o copo Lagoinha deixando a coroa branca por cima. Dois goles longos. Riscou mais um item da lista mental.

Da sua mesa tem uma visão privilegiada de todo o bar. Ali, de alguma forma, todo mundo parece igual. Existem poucos lugares onde é possível disfarçar a tristeza. A mesa de bar é um deles. Alguns disfarçam melhor que outros. Ele era do primeiro grupo.

Se o perguntassem, anos atrás, se ele se via nessa situação, negaria veementemente. Nunca foi a pessoa do boteco, da cerveja, das ruas sujas do baixo centro. Hoje, sabe que não sabia de nada. Que a vida não aceita planos e o melhor que se pode fazer em alguns casos é se deixar levar. E deixou-se levar até aquele momento.

Tirou o maço de Derby do bolso, bateu no indicador e tirou mais um. Era o décimo segundo do dia. O isqueiro Bic não funcionou de primeira. Tentou mais duas vezes antes de tragar profundamente, segurar e soltar a fumaça. Lá se vai mais um item da lista.

A poucos metros de distância, um grupo de amigos contava histórias e ria. Observou cada um deles, mas foi o casal que prendeu a sua atenção. De mãos dadas o tempo todo, riam junto com o grupo. Conversavam ao pé do ouvido entre um beijo e outro.

Lembrou-se das várias ocasiões em que esteve naquela mesma situação. Era um sentimento bom, familiar. É bom unir amigos e amores vivendo em harmonia, sem se preocupar com o amanhã.

Quando esse tipo de lembrança voltava com força, era difícil disfarçar a tristeza. Mas de tanto conviver com outras pessoas tristes, foi descobrindo o segredo para reforçar a máscara que esconde o seu verdadeiro eu.

Sua vida mudou bastante nos últimos anos. Não dá pra dizer que para pior. Sempre foi uma pessoa triste. A diferença é que agora lidava melhor com a tristeza sem querer acabar com a própria vida.

Deu mais um trago e bateu as cinzas no copo improvisado de cinzeiro. Cerveja e bitucas de cigarros misturadas no fundo. Será que era mais um item da lista “coisas que você começou a fazer que deixou as pessoas muito decepcionadas”?

Agora não importava.

Tirou a nota de cinquenta e deixou embaixo da garrafa. Fez um sinal para o garçom, já acostumado com a sua presença, indicando que havia encerrado. Em resposta, recebeu o polegar pra cima.

Ainda era cedo. Dava para ir a pé pra casa, mas não sem antes riscar mais um item da lista de decepções. Sacou o celular, tirou uma foto segurando o copo de cerveja e postou um story.

Aconteceu de novo: sobreviveu a mais um dia sem ela.

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Rafael Barbosa
impublicável.

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa