Amanhã

Alexandre Brandão
impublicável.
4 min readMar 19, 2024

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Photo by Geri Mis on Unsplash

Estavam quase todos jogados nas almofadas sobre o chão da sala. Não estavam bêbados. Ainda não. Um vento quente entrava pela porta da varanda. Na televisão, a GloboNews trazia as más notícias de sempre. Mortes em Gaza. Buracos na camada de ozônio. Queimadas. Terremotos. Geleiras derretendo.

Mas estava tudo bem. Tudo ótimo. Não era nem meio-dia e a ressaca já começava a passar. Não dava para reclamar de um dia assim. Não com trinta e cinco anos de idade e os últimos suspiros da juventude escapando pelos poros de seu corpo.

“Bota uma música”, uma das garotas disse. “Já tá na hora de começar a beber de novo.”

Ela era nova. Tinha vinte e poucos anos. Suas pupilas dilatadas dançavam pela tela do celular.

“Ainda não”, ele falou.

“Quando?”, ela disse, sem tirar os olhos do celular.

“Daqui a pouco.”

“Tédio.”

“Pode ir embora, se quiser.”

Ela olhou em volta. As outras duas garotas também mexiam em seus celulares. O homem do outro lado da sala encarava a vista pela porta da varanda, segurando o rosto com ambas as mãos. Ele ainda parecia um pouco bêbado. Parecia um pouco drogado.

“Não”, a garota disse. “Vou ficar. Só queria beber.”

“Pode beber”, ele disse. “As cervejas estão na geladeira. O uísque e a vodca estão nos armários. Os copos em cima da pia. Só não pode colocar música.”

“Tá bem.”

Ela se levantou e deu a volta na bancada e abriu um latão de Bud e voltou e sentou-se no mesmo lugar. Continuou mexendo no celular.

“Ei”, ele disse em direção ao homem do outro lado da sala. “Gabriel, você tá bem?”

Todas as garotas ergueram as cabeças e encararam Gabriel. Ele seguiu observando a paisagem com o rosto apoiado nas mãos. O vento soprava sua franja para trás e deixava a careca disfarçada à mostra.

“Gabriel?”

Ele não estava apagado. Era possível ver seus olhos se mexendo. As pálpebras fechando e abrindo, fechando e abrindo. O peito subindo e descendo, subindo e descendo. A perna esquerda inquieta batucando o chão. O pescoço se movendo lentamente de um lado para o outro, como se ele estivesse dançando no ritmo de uma música imaginária.

“Gabriel?”

Gabriel tremeu e se virou e encarou todos na sala como se não conhecesse nenhum deles. Provavelmente não se lembrava de nenhuma das garotas. Mas dele? Dele deveria se lembrar.

“O que foi, Henrique?”

“Você tá bem?”

Gabriel sorriu.

“Não sei”, disse e encarou cada uma das garotas atentamente e depois virou-se para a varanda de novo. “Acho que cansei, sabe? Não… não sei nem se posso chamar de cansaço. É só que… Ah, não sei. Não sei.”

“Quer se deitar um pouco?”, Henrique falou. “O ar-condicionado do quarto está ligado. Pode se esticar na cama, relaxar o corpo, descansar…”

“Não. Isso não vai fazer nenhuma diferença.”

“A cabeça. Não? Tem certeza?”

“Sim. Tenho.”

“Quer que eu te leve para casa?”

“Não.”

“O que você quer, Gabriel?”

Gabriel riu.

“Nada”, disse. “Pela primeira vez em muito tempo, não quero absolutamente nada. Por isso estou olhando para fora. Para os prédios. Para a cidade. Estou procurando alguma coisa para querer.”

“Ele ainda tá chapado, não tá?”, disse uma das garotas, a que tinha pegado a cerveja.

“Infelizmente, não”, Gabriel falou. “Essas coisas não me afetam mais como antigamente. Seria melhor se afetassem.”

Ele se levantou e encarou as três garotas e encarou Henrique em seguida. Seus olhos atentos, sóbrios, curiosos.

“Acho melhor eu ir andando”, disse.

“Pra onde?”, Henrique falou.

“Por aí. Pra algum lugar com um sol quente e uma cerveja gelada e um vento fresco e uma multidão espalhada pela calçada e umas poucas pessoas nos cantos usando drogas escondidas da polícia. Pra onde eu seja apenas mais um. Pra onde eu consiga descobrir se o amanhã vai valer mesmo a pena.”

Ele avançou pela sala e parou ao lado da porta, com a mão sobre a maçaneta.

“O amanhã não vale pena nesse momento?”, Henrique falou. “É isso que está me dizendo?”

“Ah… ele vale. Pra uma pessoa no meu estado, Henrique, o amanhã parece valer a pena, sim. Só quero ter certeza disso.”

“Mande uma mensagem quando descobrir.”

Gabriel sorriu.

“Por quê?”, disse.

“Porque talvez eu também precise dessa resposta.”

“Pode deixar.”

Ele abriu a porta e foi embora. Desapareceu pelo corredor do décimo andar e não se preocupou em fechá-la de novo.

Uma a uma as garotas se levantaram e se entreolharam. Pareciam assustadas. Não estavam erradas. Faziam bem em estarem assustadas. Ninguém deveria ser obrigado a escutar as conversas de dois malucos.

“Acho melhor a gente ir”, disse a garota da cerveja.

Elas saíram. Também não fecharam a porta.

Henrique se levantou e pegou o latão no chão da sala e descobriu que ainda estava para cima da metade. Virou a cerveja quase inteira na boca. Também precisava procurar suas respostas.

Mas podia viajar dentro das paredes de seu próprio apartamento. Por isso terminou com aquela cerveja e abriu outra depois.

AB — 03/03/2024

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Alexandre Brandão
impublicável.

Às vezes um cigarro é só uma fumaça e uma história é só uma história