As coisas novas

Raquel Carvalho
impublicável.
3 min readJul 22, 2021

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Foto de Pavel Nekoranec no Unsplash

Domingo a tarde a criança arregaçava as cordas vocais alarmando: gente, corre aqui, o Latino está fazendo striptease! Se só no banho se tira a roupa, a criança estava correta em se admirar com a performance de Latino, na TV, no palco, em pleno domingo, pra todo mundo ver. O recém-aprendizado da palavra striptease também desempenhava papel importante na equação, talvez fosse até protagonista. A bem da verdade na maioria das vezes o sujeito tirava apenas o casaco, no que o apresentador corava, não é sabido se pelo ato desavergonhado ou se imaginando o ibope subindo e as cifras que arrancaria dos patrocinadores. De qualquer forma, os gritos foram ganhando ares de costume, os adultos não se importavam com a possibilidade de Latino estar nu na TV, porque muito provavelmente ele não estava. Apenas um casaco não garante a movimentação de adultos ocupados com louças a serem lavadas.

Um belo dia, Latino movido ou pelo tédio ou pela ambição de assumir novos riscos na carreira, resolveu tirar as calças. Tentando conferir alguma solenidade a esse fato novo, os gritos foram em português bem claro: gente, agora é sério ele REALMEMTE está tirando a roupa! A tia pôs apenas a cabeça para dentro da sala, ainda com descrença, olhou pra televisão e sentenciou: eita, o homem realmente está tirando a roupa. Desliga a TV, isso não é programa pra criança.

Da janela da sala via-se um curso d’água urbanizado que, caso queira imaginar, é apenas um rio de águas cinzas com paredes de concreto. O rio passava por baixo de uma grande avenida e seguia a céu aberto paralelo a rua do apartamento. Quando chovia surgiam enormes empoçamentos na avenida, no que os carros diminuíam a velocidade e eram assaltados. Sem a TV a criança ficava hipnotizada assistindo o show da vida real, os pobres com seus carros populares sendo rendidos. Do terceiro andar, um olho mantinha-se na avenida e na desgraça humana, o outro mantinha-se no rio. Em algum momento mais anterior em sua infância, ventilou-se a ideia de que aquele rio poderia transbordar, fosse a chuva abundante. E aquilo atiçou a imaginação. Que fenomenal seria o rio finalmente TRANSBORDAR, se jogando para fora dessa roupa de concreto que o vestiram!

Mas o rio e o Latino tinham muito em comum, no fim das contas. Ambos eram dados a breves provocações, davam pala, mas não ultrapassavam aquela linha invisível, só acariciavam-na. Tudo muito pouco para a criança enjaulada sem TV. Se do lado de fora começassem a cair os primeiros pingos, ela já se punha a observar, com as mãozinhas fazendo almofada pro queixo encostado no parapeito da janela. Ela desejava que a água crescesse e crescesse e desnudasse o rio, e subisse e subisse e cercasse os adultos, que agora estariam embasbacados com a vida, com a água viva e crescente, e não ensimesmados com a água que lava a louça, enfadonha, controlada. Por isso, apesar das estatísticas, ainda era muito comum ouvir a criança gritar:

Gente corre aqui, o rio está fazendo striptease!

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