Autoamor

Júlia Palhardi
impublicável.
4 min readMay 21, 2021

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Arquivo pessoal

Ainda bem que existe você no mundo.

Ainda bem que você existe para andar pisando em folhas secas e afundar o nariz no coração da rosa da vizinha colhendo com as narinas o perfume da sua infância.

Que bom que você existe quando a chuva cai no imprevisível e você não abre o guarda-chuva de propósito para se benzer das gotas geladas percorrendo o seu corpo. Ninguém toma banho de chuva como você.

É lindo que você exista nesse mundo para fechar a porta do quarto e, sozinha, revelar-se bailarina… Como aquela da caixinha de músicas da sua avó, você rodopia com os braços em arco e as pontas dos pés desenham no assoalho uma tentativa de fazer encantos com a leveza do esqueleto humano. Ninguém dança balé como você.

Tão engraçado que você existe no mundo porque o seu humor particular é tão radiante que conquista até um anão rancoroso. Só as suas metáforas são tão engraçadas como você. E essas você coleciona no baú das referências e dele vai pescando comparações enquanto fala. Ninguém metaforiza a vida como você.

Que delícia que existe você no mundo e nele pode amar e ser amada, beijar e ser beijada. Você sabe que ninguém beija como você. Somente a sua língua percorre lábios em um movimento coreografado — ou não — cuja lentidão é capaz de paralisar o tempo. Só você beija com a boca e também com as mãos e olhos apaixonando pessoas.

Para ter encontros na praça e subir na garupa de desconhecidos enquanto o vento atravessa a sua pele de mulher que já nasceu em liberdade é que você existe nesse mundo. Ninguém analisa o mapa astral alheio nas primeiras horas e faz sexo em lençóis misteriosos já no primeiro encontro como você.

É mágico e heroico que você tenha nascido no exato momento em que os astros posicionavam-se no que havia de mais aéreo no céu. Não há mapa astral com tantos elementos em ar, como o seu. E essa estreia te fez assim, de uma beleza interna que implora para eclodir quando encontra fragmentos da natureza.

Ninguém lê um livro com os pés apoiados na janela sob a lua minguante de outubro. Ninguém corre para chegar a tempo de pousar os olhos no pôr-do-sol que queima no horizonte findando o dia. Ninguém faz um mergulho no mar tornar-se uma epifania como se fosse uma personagem da Clarice. Ninguém tem tanta sede de água salgada como você.

Tão gostoso que você exista nesse mundo porque assim pode fechar os olhos quando a necessidade de atentar-se aos outros sentidos lhe pega de surpresa. Suas pálpebras se fecham para sentir o efeito dos seus pelos arrepiando braços, pernas e pescoço. Seus olhos descansam, miúdos, como um ritual para ter quase um orgasmo saboreando a comida cheia de alecrim que você mesma fez. Você, mulher, é linda cozinhando. E comendo é um erotismo escancarado.

Aliás, ainda bem que o seu olhar existe no mundo. Só ele tem a coragem de sustentar estranhos que te encaram. É ele que observa atentamente o professor, como se cada palavra que saísse daquela boca desse cambalhotas tão atrativas que, não, você não desvia o olhar dos olhos dos professores mesmo quando te questionam e você treme por dentro.

É impressionante como você chora. Permite um alagamento de emoções a qualquer momento. O choro é sua cura diante das brevidades mais singelas. Ninguém tem um choro tão espontâneo como o seu.

Chorando você vira artista. Na janela do ônibus que atravessa a divisa dos estados, suas lágrimas percorrem os contornos das montanhas que ninguém repara porque se distraem, curvados, com a alienação das telas. Já você, repara no pássaro beijando a pitanga que morreria virgem se não fosse aquele beijo. E piscando você fotografa. Guarda fotos de uma vida inteira de deslumbre.

Com essas imagens, cria um álbum infinito para viver aventuras nas fantasias dos seus sonhos. E quando acorda, deixa escorrer os resquícios ao papel. Ora escorre cachoeira, ora sangue em evasão.

Assim você é. Uma poesia de versos livres. Uma fusão de todos os textos que você decorou e que você escreveu.

Porque ninguém escreve como você.

Ninguém vive como você.

Ninguém existe no mundo, como você.

Ninguém existe como eu.

Texto originalmente publicado no livro-zine “Seja uma boa ancestral”, fruta do laboratório de escrita criativa para mulheres, com Nina Rizzi.

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Júlia Palhardi
impublicável.

Fascinada pela arte de ouvir pessoas e transformar as sutilezas do cotidiano, em poesia. Jornalista, escritora, atriz.