Bembé do Mercado — 130 Anos
Dir. Danilo Barata e Thaís Brito
Provocação Criativa: O texto surgiu por meio da Oficina de Crítica Cinematográfica do Festival Internacional Panorama Coisa de Cinema — Competitiva Baiana de Longa. Revisão Textual: Poeta IG: @clauzieFerreira & Cronista: Gueu Nogueira
- O Documentário completo está disponibilizado no Vimeo
Memória, Oralidade e Tradição no Recôncavo Baiano
O documentário “Bembé do Mercado — 130 anos”, (2019), dirigido pelos cineastas brasileiros Danilo Barata e Thaís Brito. É um registro acerca da manifestação cultural conhecida popularmente como ‘Bembé do Mercado’. O festejo acontece na cidade do Santo Amaro — recôncavo baiano, sempre que possível na primeira quinzena do mês de maio, há exatos 130 anos.
O documentário tem a pretensão de registrar, através da observação, a manifestação da cultura afro-brasileira, que evoca memórias ancestrais por meio de relatos da oralidade, operando através da carpintaria da tradição a exibição dos signos que se movimentam em trânsito contínuo e imanente na atualidade, afirmando a importância de se manter o legado e sua manutenção, mesmo que o seu gestual aconteça nas práticas de novos costumes. Como podemos observar na fala da historiadora Ana Rita:
“O candomblé é feito como deve ser feito, dentro da lógica do que é um terreiro. Só que você ver as mudanças, porque o tempo implica mudanças. Toda tradição ela tem mudanças; vou te dar um exemplo: a forma que Tidú fazia o Bembé, não é a mesma forma que Pote faz o Bembé. É o mesmo candomblé, os rituais são iguais, só que existem as formas de fazer diferente; outra coisa, no tempo que Tidu, fazia, a carência que essa população tinha não é o tempo de Pote. Mas, o que sustenta Pote fazendo o candomblé é aquele de lá, antes de Pote, que é Tidú”.
Vale ressaltar aqui, como complemento da fala da historiadora Ana Rita, em relação às mudanças, numa perspectiva diacrônica, que o tempo é marcador sólido dos imbricamentos homogeneizadores da tradição, que se repete nas diferenças dos modos de fazer e executar a liturgia candomblecista. Essas mudanças também estão atreladas à vontade e orientações dos Orixás, segundo reflexão do Babalorixá, Pai Gilson:
“Podia ser todo ano a mesma coisa, as mesmas cores, mas não, tem ano que o Orixá quer azul, tem ano que quer amarelo, tem ano que o Orixá quer branco…Tudo é consultado, a mudança vem deles.”
O festejo nasce dentro do contexto pós-abolicionista. Segundo relatos orais advindos das próprias comunidades e casas de candomblé (união de quarenta e quatro terreiros de axé), que estão envolvidas direta e indiretamente na organização e perpetuação da tradição do “Bembé do Mercado”, conforme relata o babalorixá Pai Pote em depoimento para o documentário “Bembé do Mercado” (2019):
“[…] Quando a gente vai para o Bembé, a gente já vai com toda história vencida, a gente não vai para lá lutar. Acredito eu que o Bembé é um ano após a abolição. Se é um ano após abolição, João de Obá (Fundador e precursor do ‘Bembé do Mercado’- Pai de Santo, negro, de origem Malê) já vinha trabalhando há anos dentro da macumba, com oferendas aos Orixás, pedindo a Exu e aos Orixás pelo sofrimento que o nosso povo passava no Brasil. Um ano depois que tem a abolição (1889) e tem “Lei Aurea” ele coloca a bandeira do Bembé, é sinal que ele vai para lá agradecer os trabalhos que ele vinha fazendo”.
Onilé — A Senhora da Terra
Dentro desse panorama de celebração e resistência surge o que seria conhecido como o maior candomblé de rua do mundo. O festejo tem seu início com uma reverência à Onilé — “Orixá, Senhora da Terra”, que representa a mãe que acolhe os ancestrais. À noite, a oferenda à Onilé é enterrada no largo do Mercado. Pai Pote e os demais participantes da cerimônia formam um círculo em volta do buraco e com suas vestes e tecidos segredam o fundamento onde a oferenda será enterrada. Momento em que a rua se transforma em um grande terreiro a céu aberto: Atabaques, fogos de artifícios, velas, acaçás, agdás, azeite de dendê, dentre outros elementos inerentes àquele ritual, e ao som de palmas e cânticos é anunciado o início dos festejos.
Ainda que o evento aconteça na rua, há uma força que rege e organiza o ambiente. Por mais que a festa possua e carregue todos os elementos litúrgicos do candomblé (vestimentas, toténs, atabaques, oferendas, bebidas, fumos, cânticos e etecetera), a incorporação, fenômeno fundamental do ritual, se apresentará de forma velada e sensitiva, como explica Babá Geri — Babakerê (Pai Pequeno):
“O Bembé é um candomblé de rua, com todos os seus segredos, as suas particularidades e fundamentos […], a única diferença é que não acontece a incorporação. Existe apenas a vibração do Orixá”.
Logo após, no mesmo local acontece o ritual conhecido como “Padê de Exu”. Crendo que a festa ocorrerá sem nenhuma interferência, fiéis carregam ovos de galinha crus que são passados pela cabeça e arremessados; fechando o corpo e abrindo a rua, em consonância a ecos de saudações àquele que abre os caminhos — “Laroyê Exu!”. O ápice da festa é a preparação e principalmente a saída do balaio do Mercado pelas ruas da cidade em uma espécie de procissão, para o mar (Praia de Itapema), a ser oferecido à Iemanjá (“Mãe d’água), que é a confirmação e coroação de que toda a preparação do evento deu certo.
Porém, nem sempre foi assim. Conforme depoimentos de alguns atores sociais, em seu lugar de fala (os babalorixás e alguns santo amarenses que testemunharam o ocorrido), houve uma época em que o “Bembé do Mercado” ficou suspenso por determinação judicial, essa interferência custou muito caro à cidade do Santo Amaro.
A cidade viveu dois momentos críticos na sua história. O Mercado onde acontece os festejos do Bembé pegou fogo; tempos depois, o município enfrentou mais uma tragédia, uma enchente. Fatos que coincidiam com as ações arbitrarias do poder público da época, que para o povo de santo foi uma resposta ao desrespeito e opressão a tradição e reverência ancestral cultuada naquele lugar. Assim creem os adeptos e praticantes da religião.
Um dos pontos problemáticos do documentário é a ausência de vozes opostas à grande maioria dos depoimentos apresentados no filme, referentes as ações, que de algum modo, prejudicaram tanto a realização do evento em um determinado período de sua história, quanto a fomentação dos atravessamentos de opressão em que a festa comumente é posta: seja pela igreja, pelo poder público local e dos moradores da cidade do Santo Amaro.
Ainda que em um jogo alternado de câmera esteja sugerida um contraponto de narrativas entre os entrevistados, essas visões outras são neutras, apenas confirmam a veracidade das tragédias. O único que tece comentários e analisa os dois fenômenos ocorridos na cidade, numa perspectiva folclórica, é o poeta e ex-secretário de cultura Chico Porto. Ele diz que muitas histórias são contadas acerca do ‘Bembé do Mercado’, diz ainda que o “imaginário popular” atribui essas tragédias como reposta dos orixás ao impedimento da realização do evento naquela ocasião. Contudo, a fé daquele povo se manteve inalterada e resistente até então. O “Bembé do Mercado” (r)existe!