Bembé do Mercado — 130 Anos

Jil Soares
impublicável.
6 min readSep 3, 2021

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Dir. Danilo Barata e Thaís Brito

Provocação Criativa: O texto surgiu por meio da Oficina de Crítica Cinematográfica do Festival Internacional Panorama Coisa de Cinema — Competitiva Baiana de Longa. Revisão Textual: Poeta IG: @clauzieFerreira & Cronista: Gueu Nogueira

Pôster Divulgação
  • O Documentário completo está disponibilizado no Vimeo
Documentário Completo — Bembé do Mercado — 130 Anos

Memória, Oralidade e Tradição no Recôncavo Baiano

O documentário “Bembé do Mercado — 130 anos”, (2019), dirigido pelos cineastas brasileiros Danilo Barata e Thaís Brito. É um registro acerca da manifestação cultural conhecida popularmente como ‘Bembé do Mercado’. O festejo acontece na cidade do Santo Amaro — recôncavo baiano, sempre que possível na primeira quinzena do mês de maio, há exatos 130 anos.

O documentário tem a pretensão de registrar, através da observação, a manifestação da cultura afro-brasileira, que evoca memórias ancestrais por meio de relatos da oralidade, operando através da carpintaria da tradição a exibição dos signos que se movimentam em trânsito contínuo e imanente na atualidade, afirmando a importância de se manter o legado e sua manutenção, mesmo que o seu gestual aconteça nas práticas de novos costumes. Como podemos observar na fala da historiadora Ana Rita:

“O candomblé é feito como deve ser feito, dentro da lógica do que é um terreiro. Só que você ver as mudanças, porque o tempo implica mudanças. Toda tradição ela tem mudanças; vou te dar um exemplo: a forma que Tidú fazia o Bembé, não é a mesma forma que Pote faz o Bembé. É o mesmo candomblé, os rituais são iguais, só que existem as formas de fazer diferente; outra coisa, no tempo que Tidu, fazia, a carência que essa população tinha não é o tempo de Pote. Mas, o que sustenta Pote fazendo o candomblé é aquele de lá, antes de Pote, que é Tidú”.

Vale ressaltar aqui, como complemento da fala da historiadora Ana Rita, em relação às mudanças, numa perspectiva diacrônica, que o tempo é marcador sólido dos imbricamentos homogeneizadores da tradição, que se repete nas diferenças dos modos de fazer e executar a liturgia candomblecista. Essas mudanças também estão atreladas à vontade e orientações dos Orixás, segundo reflexão do Babalorixá, Pai Gilson:

“Podia ser todo ano a mesma coisa, as mesmas cores, mas não, tem ano que o Orixá quer azul, tem ano que quer amarelo, tem ano que o Orixá quer branco…Tudo é consultado, a mudança vem deles.”

O festejo nasce dentro do contexto pós-abolicionista. Segundo relatos orais advindos das próprias comunidades e casas de candomblé (união de quarenta e quatro terreiros de axé), que estão envolvidas direta e indiretamente na organização e perpetuação da tradição do “Bembé do Mercado”, conforme relata o babalorixá Pai Pote em depoimento para o documentário “Bembé do Mercado” (2019):

“[…] Quando a gente vai para o Bembé, a gente já vai com toda história vencida, a gente não vai para lá lutar. Acredito eu que o Bembé é um ano após a abolição. Se é um ano após abolição, João de Obá (Fundador e precursor do ‘Bembé do Mercado’- Pai de Santo, negro, de origem Malê) já vinha trabalhando há anos dentro da macumba, com oferendas aos Orixás, pedindo a Exu e aos Orixás pelo sofrimento que o nosso povo passava no Brasil. Um ano depois que tem a abolição (1889) e tem “Lei Aurea” ele coloca a bandeira do Bembé, é sinal que ele vai para lá agradecer os trabalhos que ele vinha fazendo”.

Sttil — Bembé do Mercado

Onilé — A Senhora da Terra

Dentro desse panorama de celebração e resistência surge o que seria conhecido como o maior candomblé de rua do mundo. O festejo tem seu início com uma reverência à Onilé — “Orixá, Senhora da Terra”, que representa a mãe que acolhe os ancestrais. À noite, a oferenda à Onilé é enterrada no largo do Mercado. Pai Pote e os demais participantes da cerimônia formam um círculo em volta do buraco e com suas vestes e tecidos segredam o fundamento onde a oferenda será enterrada. Momento em que a rua se transforma em um grande terreiro a céu aberto: Atabaques, fogos de artifícios, velas, acaçás, agdás, azeite de dendê, dentre outros elementos inerentes àquele ritual, e ao som de palmas e cânticos é anunciado o início dos festejos.

Stiil — Doc. Bembé do Mercado Ritual à Onilé

Ainda que o evento aconteça na rua, há uma força que rege e organiza o ambiente. Por mais que a festa possua e carregue todos os elementos litúrgicos do candomblé (vestimentas, toténs, atabaques, oferendas, bebidas, fumos, cânticos e etecetera), a incorporação, fenômeno fundamental do ritual, se apresentará de forma velada e sensitiva, como explica Babá Geri — Babakerê (Pai Pequeno):

“O Bembé é um candomblé de rua, com todos os seus segredos, as suas particularidades e fundamentos […], a única diferença é que não acontece a incorporação. Existe apenas a vibração do Orixá”.

Still — Doc. Bembé do Mercado

Logo após, no mesmo local acontece o ritual conhecido como “Padê de Exu”. Crendo que a festa ocorrerá sem nenhuma interferência, fiéis carregam ovos de galinha crus que são passados pela cabeça e arremessados; fechando o corpo e abrindo a rua, em consonância a ecos de saudações àquele que abre os caminhos — “Laroyê Exu!”. O ápice da festa é a preparação e principalmente a saída do balaio do Mercado pelas ruas da cidade em uma espécie de procissão, para o mar (Praia de Itapema), a ser oferecido à Iemanjá (“Mãe d’água), que é a confirmação e coroação de que toda a preparação do evento deu certo.

Still — Doc. Bembé do Mercado

Porém, nem sempre foi assim. Conforme depoimentos de alguns atores sociais, em seu lugar de fala (os babalorixás e alguns santo amarenses que testemunharam o ocorrido), houve uma época em que o “Bembé do Mercado” ficou suspenso por determinação judicial, essa interferência custou muito caro à cidade do Santo Amaro.

A cidade viveu dois momentos críticos na sua história. O Mercado onde acontece os festejos do Bembé pegou fogo; tempos depois, o município enfrentou mais uma tragédia, uma enchente. Fatos que coincidiam com as ações arbitrarias do poder público da época, que para o povo de santo foi uma resposta ao desrespeito e opressão a tradição e reverência ancestral cultuada naquele lugar. Assim creem os adeptos e praticantes da religião.

Um dos pontos problemáticos do documentário é a ausência de vozes opostas à grande maioria dos depoimentos apresentados no filme, referentes as ações, que de algum modo, prejudicaram tanto a realização do evento em um determinado período de sua história, quanto a fomentação dos atravessamentos de opressão em que a festa comumente é posta: seja pela igreja, pelo poder público local e dos moradores da cidade do Santo Amaro.

Still — Doc. Bembé do Mercado

Ainda que em um jogo alternado de câmera esteja sugerida um contraponto de narrativas entre os entrevistados, essas visões outras são neutras, apenas confirmam a veracidade das tragédias. O único que tece comentários e analisa os dois fenômenos ocorridos na cidade, numa perspectiva folclórica, é o poeta e ex-secretário de cultura Chico Porto. Ele diz que muitas histórias são contadas acerca do ‘Bembé do Mercado’, diz ainda que o “imaginário popular” atribui essas tragédias como reposta dos orixás ao impedimento da realização do evento naquela ocasião. Contudo, a fé daquele povo se manteve inalterada e resistente até então. O “Bembé do Mercado” (r)existe!

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Jil Soares
impublicável.

Bacharel em Cinema pela UFBA. Colaborador: Revista Subjetiva e Revista Impublicável ex - editor de conteúdo da Revista de Arte GRAVIDADE