Bump, barulhinho bom

Matheus Meira
impublicável.
8 min readFeb 23, 2016

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Leia esse carinho ao pé do ouvido…

E o que é que a vida fez da nossa vida?

Sabe, foi muita força reunida até escrever a última carta que te mandei. Você não sabe quanto sentimento em cada linha eu despejei, mesmo, só pra você saber que daqui eu te desejava demais. E quando eu soube que a carta nunca chegou ao destinatário, todo aquele friozinho na barriga se transformou em cólera e enxaqueca, agora no extremo oposto do corpo. Na cabeça. Daí um misto de saudade e de raiva de você se consubstanciavam. Burrice da minha parte, já te acusava logo de ter recusado minha carta, e nunca suspeitar de um erro dos Correios, de algum outro erro como esse meu, de não conferir de imediato o que houve… Cheguei a pensar em voltar aí, pra te esfaquear de cima abaixo, ou pra te beijar mais uma vez…
Seja eu, deixa que eu seja eu. Me transpassava de ódio ouvir você dizendo isso, na vozinha açucarada de Marisa Monte no rádio, mas sabia que era você ali, que era essa sua cara sonsa me engambelando. Era esse pelo todo acima dos olhos uma flauta doce enfeitiçando uma cobra burra, uma cobra eu. Era você me desfazendo de novo…

Rio de Janeiro, 20 de Janeiro de 1995.

Meu bem,

Quem te escreve é essa fera, você sabe quem é. Borrifei várias gotinhas daquele perfume que você me comprou enquanto a gente cambaleava bêbados pela Afonso Pena. Comprou naquele dia que você entrou na loja se livrando de mim, como quem larga um encosto na calçada, e eu lá permaneci, meio que me concentrando pra não morrer.

Aliás, que mania essa nossa de escrever sobre quando estivemos bêbados. Como se fosse engraçado estar bêbado. Mas eu sei que você ria por dentro. Você é assim, sadista. Quer ver a extensão da minha pica estalando de vontade, sem poder ter… Enquanto você entrava na loja eu reparava cada curvinha que sua bundinha tem e como ela balança com carinho enquanto você desfila. Você sabia que eu caía de amores por você, sim, por isso me deixou estirado no passeio e foi sambando perfumaria adentro. Você comprou essa porcaria de Armani pra eu lembrar todo santo dia que não precisa de mim. Que quem manda em mim é você e não o contrário. Que você tem dinheiro pra jogar na minha cara o tempo todo. E se desfazer de mim quando quiser também.

Mas é aqui que quero chegar: eu nunca me declarei pra você. Você também nunca disse nada sobre amor pra mim. Ficamos apenas como conhecidos próximos. Um estágio latente entre a vontade louca de penetração e o “desculpe” depois de um esbarrão entre transeuntes aleatórios. A única coisa que você me deu foi fetiche, e um Armani. E você gostava disso. Você gosta de romantismo, mas gosta muito mais de controlar. De me controlar. E ver alguém de pau duro por ti. Você sabia que eu viria embora, que eu te levaria nos pensamentos, que eu traria essa suave curvinha da sua lombar em cada espaço do meu pensamento. Que eu carregaria pro resto dos meus dias a vontade incontrolável de embolar minhas mãos nesses cabelos pretos e forçar sua boca contra meu volume: com carinho, como quem leva uma pessoa sedenta a uma bela taça de bebida.

Você queria era mesmo isso: só saber o que eu queria de você. Você queria ler as minhas palavras escritas a cada carta acariciando todo a extensão da sua virilha e te fazer tremer como uma máquina de tesão pronta para gozar. E é bom te lembrar de algo mais: na noite que compramos esse perfume, passamos nos equilibrando um no outro e rindo feitos duas crianças retardadas no meio da avenida. Eu via, com meus próprios olhos, claro,um pouco ébrios, a gente subindo pela escadaria velha do seu prédio. Eu hoje já até sei como fazer para abrir aquele portão enferrujado sem te chamar. Eu poderia te atacar a qualquer momento, meu bem…

Mas a visão que eu tive foi pura ilusão. Eu via mesmo a gente subindo aquela escadaria e, no final dos degraus que a gente — sabe Deus como — subia com impulso de quem quer conhecer logo o que tem por debaixo das calças, arrebentava aquela portinha de madeira — que aliás eu também sei abrir sem auxílio de chave alguma, agora… E você, já se dependurando no meu cangote, aproveitava o solavanco do empurrão na porta pra se jogar sobre mim, e colocar toda sua língua molhada dentro da minha boca. E a gente nem se preocupava como que a vizinha do 107 veria. Você abria meu zíper com a mão esquerda, aquela que você tem mais destreza, que acaricia desde o umbigo até o finalzinho da púbis quando pensa em mim… Só queria mesmo era sentir minha potência toda por debaixo daquela box branca, que te afoga de água na boca só de pensar em tirar com os dentes. E a gente caía sobre o sofá. Conseguíamos ouvir mesmo só o barulhinho bom das nossas línguas alternando e se chupando pela boca. Pois não demorava muito ali dentro, você ia descendo com a pontinha da língua pelo meu pescoço até meus ombros, depois meus mamilos. E ali eu urrava de tesão, e te apertava agora como quem quer espremer até estourar seu corpo. E você sabia que eu ia te estourar, mas queria preparar o instrumento pra isso, com sua própria saliva. E essas suas sobrancelhas grossas e pretas cerravam pouco abaixo do meu quadril me levando, sem roupa alguma, a floresta negra alemã. Você adorava me impor respeito. E me fazia querer entrar em você, de um modo que só mesmo meu nervo saberia fazer. Mas você queria ver. E depois de tanto deliciar com a língua cada envoltura do meu instrumento, se punha a cavalgar num entre-sai encantado de sensações tântricas. Você tinha o controle da cavalgada, porque em todo o tempo demonstrava ter as rédias. E você gozava ali sem medo de nada, sem medo de se fazer ouvir. A gente gozava ao mesmo tempo, num mantra que eu não conhecia. E a expressão de alívio e de gosto se condensava na escuridão entre seus cílios e no breu da sua íris. Eu já não sabia em que planeta estava. Eu estava no seu mundinho, bem dentro de você, extasiado e preso. Seu cheque-mate em dois orgasmos.

Mas nós não fizemos nada daquilo aquela noite. Daquela andadinha na Afonso Pena só me lembro mesmo de olhar seu prédio, te despir com os dentes — num resumo de tudo antes relatado — e apagar. E, meu bem, preciso confessar:

Na manhã seguinte, você me deixou possesso de ódio.

Acordei naquele seu sofázinho carmim, meio desbotado porque tu o deixas embaixo da janela, pegando o pleno sol do meio-dia, todos os dias. Parece não querer cuidar de nada, uma mania de relaxamento só tua. E fui andando logo pra dentro do seu quarto, fui mesmo pra te perguntar como eu havia ido parar ali, por que não fui pra casa. Você estava com o braço coberto de sangue, inclusive sujando sua colcha branquinha. Havíamos bebido muito naquela noite, e numa daquelas nossas brincadeiras idiotas, devo ter te machucado com alguma garrafa, não sei… Minha reação na hora foi correr pra te socorrer, eu sentia que você estava morrendo — você sabe que não posso ver sangue, inclusive — mas você logo acordou, você lembra:
- Não me encosta! Sai daqui! Vai embora!
- Deixa eu te secar pelo menos, e fazer um curativo!
- Não, só sai!

Você ainda me afastou com o pé, como se eu fosse algum tipo de tarado que conhecera na rua. Mas nós nos conhecíamos há tanto tempo. Então eu saí, chutando aquele seu abajur cor de carne ridículo, bati a portinha de madeira e decidi nunca mais te ver. Viria pro Rio aproveitando pra te esquecer… Mas você sempre esteve à frente, inteligência te ornava e todas as suas ações sempre foram calculadas pra me ter nas mãos, não é mesmo?

Você nunca transou comigo. Mas sempre soube que eu voltaria.

Você nunca me deu. Mas eu sempre te dei palavras, e é disso que você gosta.

Estou aqui no Rio, doido pra voltar.

Eu na verdade te amo. E te quero para além dessas cartas sacanas que sempre envio…

Beijo na sua bundinha,
Sua fera.

Eu acho que, meu bem, é tudo providencial, mesmo. Soube que a carta fora recusada cinco meses depois de enviada pra ti, aí nesse interior que você se esconde… Eu não tive muito tempo de te odiar não.

No dia seguinte, tentando encontrar um antigo LP que eu trazia nas mudanças (e seis meses depois de me mudar, nada tinha sido tirado ainda das caixas, porque sou relaxado também, porque te venero até nos seus defeitos e te copio como se enfeitiçado estivesse) encontrei também todas as cartas que havia te enviado antes, quando ainda morava aí, na mesma cidade que você. Você devolveu todas elas. Desejei na hora todas as desgraças possíveis pra cima de sua vida, te desejei num acidente, entre os mortos. Tamanha raiva aumentava a cada carta sacana que encontrava, algumas delas tinham marcas de prazer seu…

Mas entre elas, encontrei também uma marca de cuidado seu.

Descobri que você me amava também assim que encontrei isso, meu bem. Esse foi o seu primeiro, e último, e único eu te amo. Pronunciado em atos, com remetente diferente do seu nome: Hospital Santa Clara.

Eu sentei no cantinho da sala que tem visão direta pra Quinta da Boa Vista, aqui em São Cristóvão. Numa sorte odienta, a paisagem, já alaranjada por ser exatamente 17:56 da tarde, pelo horário do relógio da sala, preparava todo o remorso que eu degustaria pelo resto dos dias, amor.

Você nunca transou comigo, porque sabia que eu não me importaria nem um pouco em ser carimbado pelo deleite do seu prazer. Você também sabia que eu jamais permitiria nenhum maldito pedaço de látex entre mim e ti, nós seríamos um só se assim eu pudesse te ter, e você sabia… Você não me deixou cuidar de ti porque aquele sangue que vertia do seu pulso era só seu, e você tinha consciência de tudo. Você gostava sim de receber cada escrita safada, sacana minha. Não queria ligação nenhuma. Queira ler e reler cada vez que minha pele e cada músculo do meu corpo se esfregava lentamente sobre o teu, queria repetir e sentir o teu corpo pesando sobre o meu. Cada carta que só demonstrava o quanto eu era seu servo. Porque esse era o nosso mantra, essa era nossa penetração, nosso tudo. Era desse jeito que você tinha controle de tudo, e não era vítima de mais nada, esquecia que estava numa outra escravidão insuportável…

Pois a correspondência que eu te enviei em janeiro voltou hoje aqui pra casa, e um X marcado, bem descuidado, meio de quem marcou com pressa de se livrar do ofício, no quadradinho oito da correspondência:

8. Falecido

21 de Junho de 95, neném
não te beijei quando saí
21, meu bem.

Dia que aqui morri também.

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