[Carta de uma profissional da saúde
àqueles(as) que nos aplaudiram na janela]
queria te contar
sobre nossos super poderes
romantizar o trabalho da ponta
de gente
como eu
queria escrever sobre o que há de bom
e de bonito
florear estrofes
viralizar palavr-alento
queria querer
aplausos e homenagens
mas não dá
ainda
porque hoje
quero te contar que
eu queria
queria dizer que tá tudo bem
sem completar com
na medida do possível
e não precisar confessar
que
na medida do meu possível
às vezes
não tá
queria que nossas capas
de super-heróis
e, em maioria,
heroínas
fossem coloridas
e resistentes
ao invés de brancas
nunca suficientemente limpas
iminentemente infectadas
sempre infectantes
queria compartilhar descuidos sanitários
como se fossem
descuidos
e não pecados
sentenças de morte
confessas
queria a tranquilidade
da confiança
apenas acreditar
nas normativas
de que não mudarão
nas perspectivas otimistas
quaisquer
e na plena efetividade
do meu EPI
queria fungar
e limpar o nariz
antes de umedecer a máscara
e convencer os outros
e a mim
que é rinite
queria poder me afastar
da presença dos meus colegas
por cuidado
queria querer
mas como não posso
e não quero
por vezes me afasto
da minha
queria estar perto
da família
ou ao menos
enxugar as lágrimas
de quem preferia
estar longe da sua
e se culpa
por não conseguir
queria que desse para sentir o peso
daí
e queria
também
que essas palavras não pesassem
que não precisassem pesar
em ti
e em mim
queria ser leve
te contar da alegria de ter chegado até aqui
do que da minha profissão encanta
do que a área da saúde pode
no sentido de potência, não de poder
queria te fazer sorrir
sem máscara
ao imaginar os sorrisos em vírgula
que os olhos formam
pela bochecha empurrar
e o som do eco
que a risada faz
no escudo facial
queria te confidenciar
sobre o prazer do som
abafado pela máscara
do estalar
dos beijos
que ressoam e tocam
a bochecha
ou os lábios
mas não cabe
não aqui
não agora
não apenas
e agora te escrevo sobre isso
as novas maneiras de tocar
queria tocar nisso
as maneiras com que a escrita
toca
queria te contar:
quero te tocar
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Janaína O. Steiger
Psicóloga residente em Saúde da Família e Comunidade