COM QUE FREQUÊNCIA VOCÊ PENSA NO IMPÉRIO ROMANO?

João Gabriel
impublicável.
4 min readDec 27, 2023

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Alguém o ressucitou, em algum momento, e todos voltaram a falar dele. Muitos, inclusive este que vos fala, ficaram absolutamente sem entender nada, mas que entrou na brincadeira mesmo assim. Com que frequência pensamos no Império Romano? Aparentemente, nenhuma. Somente os entusiastas e estranhos que mergulham nesse universo histórico de séculos atrás, talvez. Talvez. Se me for feita novamente esta pergunta, mas de forma séria, diria que, na verdade, pensamos o tempo inteiro no Império Romano, ou melhor, pensamos o tempo inteiro COMO o Império Romano de outrora.

Tal como todos os impérios vistos ao longo da história da humanidade, o Império Romano abrigava uma sociedade extremamente misógina, mas que tanto os seus homens como suas mulheres abrigavam em si um forte senso de proteção à honra e virtudes como disciplina e civilidade. Além disso, todos projetavam Roma como uma espécie de entidade a qual todos pertenciam e deviam proteger. Coincidentemente, desde os tempos mais remotos, esses valores e ideais se identificavam com aqueles demonstrados pelos grupos sociais dominantes, todos compostos por homens e cidadãos. Ser homem e cidadão, aliás, era a mais alta honraria do estrato social. Estes não eram apenas homens comuns, mas homens superiores; viris. Os valores e ideais projetados na mentalidade romana, por acaso, se confundiam com seu ideal de virilidade e se faziam presentes, em maior ou menor grau, em todos os habitantes — homens e mulheres; cidadãos; escravos; comerciantes; artesãos e etc.

Basicamente, a virilidade — e, logo, a mentalidade romana — se baseia uma definição dada por historiadores — como Paul Veyne; Georges Vigarello — como “estocar e não ser estocado”. Ou seja, o bom romano é aquele que fere e não é ferido; que bate e não apanha; que vence e não perde; que age e não se torna passivo; que conquista e não se submete. Dá pra entender um bocado da mentalidade conquistadora e dominadora que marcou o Império Romano na vitória sobre seus oponentes. Calcada ainda no apreço pela cultura clássica; civilidade; organização e disciplina, temos a constituição de uma sociedade ideologicamente militarista. Mesmo a homossexualidade, francamente naturalizada do ponto de vista social, tinha suas limitações de apreço. Um bom romano pode sim, se relacionar com outro homem, mas jamais deve ser passivo na relação — em todos os sentidos possíveis. Se assim for, se o bom romano ainda se parecer com um “macho alfa” (Vir) não há problema em assumir este ato publicamente. Cairá em desaprovação social se for descoberta a sua passividade, sejas nos atos banais do cotidiano, seja na cama. Vemos, então, uma homossexualidade mascaradamente masculinista no mundo romano, onde só é possível a relação plena com escravos e, mesmo, com adolescentes. A liberdade ideal apenas no segredo do quarto.

Pensamos, então, como o Império Romano? Em muito, eu diria que sim. Tentados pela dominação e conquista em cada conversa, em cada diálogo, em cada instância do cotidiano. Não sabemos lidar com a possibilidade da derrota, do fracasso. Nem queremos pensar nisso. Queremos a bravura, a força, a disciplina e o cumprimento de metas como se o corpo fosse algo mais do que um corpo, algo feito de botões e engrenagens. Ou, talvez, de armaduras e togas romanas. Queremos o tempo todo — todos nós — sermos como um bom romano; um viril cidadão que luta, protege, persegue e se esgota na perseguição de um ideal que nós mesmos construímos. Queremos estocar e não ser estocados e nem assumir a responsabilidade da dor que causamos no Outro ao estocar.

Mesmo no cenário político, a ascensão da extrema-direita e dos movimentos neonazistas deixam bem claro o quanto flertamos com a dominação e a opressão em nossas relações. As atitudes masculinistas, no entanto, podem ser percebidas em todos os espectros políticos, até aqueles que se pretendem contra tais atitudes no discurso. Cabe ainda, refletir sobre os valores e ideais que carregam; projetos de sociedade e espaços de liberdade do Outro. Que bandeiras levantam? Como pensam dentro de tais bandeiras? Por aí vai… infelizmente, nossas ações também se tornam limitadas.

Cabe, então, a reflexão sobre as mentalidades e as lógicas culturais que as permeiam. O imaginário do coletivo e suas figuras arquetípicas. Para mim, os flertes com os ideais da romanidade são visíveis nas escolas; nas faculdades; nas empresas; nas igrejas; nas academias; nos bares; no calçadão do subúrbio até os edifícios dos bairros mais nobres. O flerte com a mentalidade viril e, mais ainda, aquela de cujas origens remontam há séculos no Império Romano ainda pulsam. Se pensamos nele? Ainda pensamos muito COMO ele.

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João Gabriel
impublicável.

E não sabendo que era impossível, ele foi lá e soube...