Ensaio sobre LEALDADE
É 00:58 e eu estou estranhamente acordada como quem se levanta para um novo dia. Não que o estranhamento venha da novidade, que a falta de sono já me tenho como um amigo inoportuno, mas pelo fato de que o dia inteiro foi puxado. Me esforcei para não dormir de tarde, acordei bem cedinho, fiz exercícios físicos. Cansei meu corpo para estar o suficientemente estirada no conforto de minha cama. No entanto, ela me parece mais como uma cama de espinhos, que me repele. Os tempos eram amenos, eu acordava e cumpria com minhas responsabilidades, de tarde corria atrás dos meus objetivos, de quarta ia na igreja. Alimentação? Ok. Água. Ok. Hidratante nas pernas? Impecavelmente Ok. Até hidratante no rosto. Filtro solar e roupas no varal. GOD! I’m living my best life…exclamou alegremente a tola. Mas é que realmente eu estava vivendo meu momento. Esqueci até de mencionar as duchas no carro, o tanque abastecido. Coisa de cinema. Ganharia o Oscar da vida ordinária. O Nobel do quotidiano. Mas sem premiações. Leve, solto, assim como deve ser. As coisas caminham mais ou menos de forma equilibrada até você se deparar com os seus maiores medos. E eles vêm assim, de repente, de susto, sem te avisar. E deixam você estarrecida. Desamparada. Amedrontada. Porque eles têm o poder de afugentar tudo que era bom. Ou melhor, tudo que estava meticulosamente equilibrado para ser bom. O medo é o estopim do balançar de nossas frágeis estruturas. Sorte a minha que eu nunca fui covarde e sempre gostei de confrontar os meus medos. Por vezes até amá-los. Como parte de mim que são. Porque no fim, sou o que sou e tá tudo bem ser assim. O novo álbum da Taylor Swift me trouxe muitos pensamentos. Um deles foi de que é preciso abraçar seu estereótipo. Calma. Não me interpretem mal. Quando digo isso, não quero dizer para sermos forjados, aderindo a uma generalização superficial. Não. Digo mais no sentido de estar tudo bem com aquilo que se é. Uso estereótipo porque a ideia por trás da palavra me cai bem. No auge dos meus 24 anos pude perceber que minhas angústias, meus desesperos são parte de uma psique socialmente construída, que parte de um ponto comum e está inserida em uma determinada realidade. No meu caso, de uma menina branca, introspectiva, de classe média. Isso explica muito porque eu gosto das músicas da Taylor. Porque eu me identifico com elas. E com a idade que eu estou já não tenho mais vergonha disso. Antes eu tinha um pouco. Achava brega, pensava que iam rir de mim por eu ser uma caipira sweetheart romantiquinha. Hoje eu bato no peito. E digo que sou mesmo. Canto Lover a plenos pulmões. Entoo Cornelia Street como um hino da rebelião dos corações apaixonados do século XXI. Quando você abraça o estereótipo e aceita você é mais feliz. Eu estava contente com essa constatação pseudo-científica que minha alma tinha alcançado. Até que eu encontrei a famosa palestra da pesquisadora estadunidense Brené Brown. Em que ela comprova empiricamente e coloca em palavras certas meus sentimentos. A pesquisa realizada por ela mostra que criatividade, auto-afirmação, noção de pertencimento e amor estão diretamente relacionadas à vulnerabilidade. Pessoas que reconhecem o seu lado humano, seus erros e vulnerabilidades tendem a ser mais completas e felizes. Então aqui estou, dizendo pra vocês, meus caros leitores, que eu não consigo dormir. Não consigo dormir porque era hoje 18h quando eu coloquei o meu querido pijama. E tudo estava bem, eu estava vivendo a minha melhor vida. Tudo caminhava perfeitamente bem. Fiz o que tinha que fazer, li o que tinha que ler. Comi minha salada de frutas. E quase na hora de eu estar me preparando para dormir, me veio de assalto esse medo. Esse fantasma que me ronda desde os tempo mais remotos. Explico. Eu sou uma garota solitária, por opção e destino. Não quero aqui fazer drama, como quem se queixa. Pelo contrário. O tempo me constatou que eu amo a solidão. Eu aprendi com ela. Eu me amasiei com o silêncio. Reconfortei-me em meu próprio mundo e passei a definir minhas amizades pelo nível de aceitação dessa minha necessidade de estar só. Eram meus amigos quem aceitava sem reclamar meus longos sumiços, minha quase total ausência, minha ocupação de sempre. Eu sempre estava fazendo algo, me metendo em algum estudo, enfiando a cara em algum livro. Confesso que por muito tempo achava que era pra me esconder. Pra mascarar minha solidão, que eu trabalhava demais, que eu lia demais, que eu estudava demais. Mas com o tempo fui percebendo que não. Era o que eu amava mesmo. Era meu lugar de paz. Conceito de descanso para mim era estar só. Descansar seria impossível com alguém do lado. Em quaisquer circunstâncias, à exceção do meu cachorro. Nunca me esqueço de umas palavras que escrevi no início da faculdade: a introspecção custa caro quando se tem poucos anos. Toda essa pressão de estar rodeado, de estar no momento, toda hora conectado, conversando com inúmeras pessoas ao mesmo tempo. Tudo isso não é pra mim. Nunca foi e creio que talvez nunca será. É preciso um exercício muito grande de auto-conhecimento e maturidade para encarar isso. Foi quando a campainha começou a tocar. Nessa vida de dividir apartamento eu já vi quase de tudo. Em plena quinta-feira, obviamente, as visitas não eram pra mim. Conforme o relógio corria, no seu tic-tac, mais pessoas iam chegando. O clima de agitação, todo mundo se arrumando, as risadas quebraram a minha áurea de perfeição e colocaram em xeque a exatidão de minhas escolhas. Em qual ponto da minha vida eu havia decidido que me tornaria a garota do camisolão às 18h da tarde. Não consigo discernir bem qual foi esse momento, mas a simples indagação deixada no ambiente pelo estridente contraste entre estilos de vida me roubou a quietude. Meus olhos começaram a borboletear e meu cérebro deu pane. É nessas horas que eu acabo com meu ouvido. Desconto minha raiva do mundo no movimento repetitivo de pular com os fones de ouvido ligados no último volume, na inútil tentativa de acobertar os meus pensamentos. Afugentando meus medos. A música me transporta para um lugar parcialmente seguro, no qual, por alguns minutos de êxtase meu cérebro recebe a narrativa que lhe convém. Geralmente eu me recordo dos dias bons, construo narrativas brilhantes e envolventes com personagens conhecidas no meu universo interior e, principalmente, ali, naquele momento, eu sou a bailarina que sempre quis ser. Com os membros abraçando o ar num movimento harmonioso, repleto de elegância e charme. como sempre quis ser. Mas acontece que eu não sei dançar, então os anjos que me veem devem contemplar um espetáculo ridículo, que ganha um toque a mais de melancólico à medida em que eles tem acesso aos meus pensamentos. As músicas não falam senão aquilo que queremos ouvir. E logo as narrativas incongruentes ganham a força de um enredo que conta a história de minhas frustrações. A missão de acobertar os pensamentos com o alto volume do som, então, só traz surdez. Uma consequência natural de tamanho desequilíbrio, tamanha imprudência. Quando o efeito disruptivo passa, deito em minha cama derrotada, como quem travara uma batalha sem fim. Os pensamentos continuam e eu não consigo dormir. Talvez eu tenha errado bastante. Talvez eu tenha me fechado demais. O passado soa como um corredor de portas regulares que você só abre, espia a vai embora. Bom, o meu passado soa como um corredor de portas regulares. Muitas fechadas, que não pude nem abrir. Algumas eu abri, espiei, tive que fechar. Outras eu abri e tentaram me sugar, a ponto de eu precisar de ajuda para não ser tragada. Eu ali, andando por aquele corredor de portas regulares com uma saia levemente plissada e sapatilhas. Fiz o melhor que pude, o que é uma mentira, pois eu poderia ter feito bem melhor. Nesse caminho eu perdi algumas coisas irreversíveis, que me causam pânico até hoje, que me jogam no lixo e me relembram de qual bueiro eu saí. Só sei que disso resultou-me ali: prestes a me formar, com poucos, mas leais amigos, que não me visitam às quintas-feiras. Não é segredo a ninguém de que tenho um certo medo de ficar sozinha. Algo que me pareceu recentemente curiosos, porque tampouco tenho medo da solidão. ela me agrada enquanto complemento. Mas como ser social que somos, não podemos fazer dela protagonista, porque ela tem uns amigos inoportunos que vem sempre junto sem serem convidados, como a frustração, a tristeza, a ansiedade. Deus que me livre viver sozinho. Mas se eu não temo a solidão, por que então desse meu medo todo? que me resplandece por todo o corpo, que me colocam em prova e tira o meu sono? Pensando e pensando e pensando. Pensei que na verdade, na verdade, meu medo é outro. Eu tenho problemas com lealdade. A lealdade é pra mim uma das principais virtudes, senão a mais bela, senão a mais importante. Em minhas amizades e relacionamento eu sempre busco esse elemento. Infelizmente, experiências com a deslealdade alheia me impactaram de uma forma negativa. Talvez seja eu que espero de mais de alguém que a mim não me deve nada. Aí entra o meu temor. Meus pais me devem alguma coisa. Foram eles que me colocaram no mundo, eles que me cuidaram. Eles são leais a mim, como sou leais a eles. Talvez a minha avó. Mas eu não tenho irmãos. Não tenho família. Se os perco, acabou-se no mundo a parcela de humanos que a mim me devia lealdade. Estou sozinha. Não tenho ninguém to get my back. No one for me. E isso me assusta. Lealdade não se acha na esquina. Não se conquista fácil. Não se pode exigir. Por isso morro. Como quem estivesse divido entre a lealdade que deve à vida em sociedade, como coisa real por fora e à sensação de que tudo é solidão, como coisa real por dentro.
“Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.”
Fernando Pessoa