Histórias alegres

Alexandre Brandão
impublicável.
5 min readMar 12, 2024

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Photo by Joseph Albanese on Unsplash

O quarto precisava de uma boa limpeza, mas não estava imundo. Um pouco empoeirado, sim. Nada demais. Alguns pelinhos perdidos nos cantos. Uma ou outra lata de cerveja vazia no chão. Kaiser ou Crystal, ele não se lembrava. Deviam estar debaixo da cama.

Era quase dia. Umas cinco da manhã, ele chutava. Daqui a pouco o sol surgiria no horizonte e acabaria de vez com o sono. Se bem que ele não podia chamar aquilo de sono. Não, nada perto disso. Cochilo? Talvez também fosse um pouco exagerado. Dera algumas boas pescadas durante a noite, enquanto a vagabunda roncava como uma porca do outro lado da cama.

Não sabia o nome dela. Não se importara em perguntar no começo da noite, não se importaria em perguntar pela manhã.

E lá vinham os pensamentos ruins de novo, como minhoquinhas rastejando dentro de seu cérebro. Velhos hábitos voltam com a mesma facilidade de um gole de cerveja gelada.

Virou-se de um lado para o outro na cama. Remexeu-se até parar com o rosto virado para cima. Os olhos encarando a sujeira no teto. As manchas de mofo e as manchas de coisas estranhas que o inquilino anterior fizera ou que ele mesmo fizera e não recordava.

“Você não para quieto, hein?”, a garota disse.

“Pensei que estivesse dormindo”, ele disse.

“Eu estava. Você me acordou.”

“Sinto muito.”

Ela riu.

“Não, você não sente”, disse. “Você não se importa.”

“Não”, ele concordou. “Não me importo.”

“Nem sabe meu nome.”

“E você não sabe o meu.”

“Mentira, Henrique. Sei, sim.”

“Merda. Sabe mesmo.”

“Por que não consegue dormir?”

Ele suspirou.

“Não sei”, disse.

“Acho que sabe.”

“Acho que sei.”

Ele sabia. Sabia muito bem. Bastava fechar os olhos e as imagens apareciam. Imagens do passado. Imagens do presente. Imagens do futuro. Tudo junto. Tudo misturado. Era como aquele filme maluco Tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo. Uma orgia de informações verdadeiras e falsas e de memórias e de previsões e de desejos e de arrependimentos.

Quadros de sua própria vida pintados por um pintor extremamente sádico. Trechos que vivera pintados de vermelho. O sangue escorria pela borda da moldura. Trechos ainda por viver envolvidos por algo sujo, metálico, podre.

“Então, por quê?”, ela insistiu.

“Não sei como colocar em palavras.”

“Não é esse seu trabalho?”

Ele a encarou. Ela sorriu. Debaixo da luz fraca da madrugada, parecia a mulher mais linda do mundo. Todo mundo é bonito quando suas expressões estão disfarçadas pelas sombras e seus defeitos não são nada além de uma recordação distante, afetada pelo álcool da noite anterior.

“Sim”, ele disse. “Mas eu não sou mais o mesmo. O tempo é cruel. Ele sempre nos alcança. Ele sempre vence.”

“Você diz como se tivesse oitenta anos e não uns… uns quarenta e poucos? Trinta e muitos?”

“Trinta e muitos.”

Ela riu.

“Qual o seu nome?”, ele falou.

“Elis”, ela disse.

“Elis”, ele repetiu. “Como fui esquecer?”

“Você nem perguntou.”

Ele corou. Torceu para ela não perceber. Mas é claro que ela percebeu. Elas sempre notam.

Ficaram em silêncio. Ouviram as folhas das árvores caindo. Escutaram o movimento fraco das ruas. Um carro. Uma moto. Outro carro. Alguém quebrou uma garrafa. Um cachorro latiu. Outro o acompanhou. E depois outro. Um gato gritou desesperado. Um grande portão foi arrastado e vibrou como um trovão rompendo a tranquilidade da madrugada.

Elis se remexeu na cama. Fechou os olhos. Os cabelos vermelhos mal chegavam aos ombros. A franja cobria a testa. A pele era tão branca que quase reluzia, mesmo na penumbra.

“Vai ficar me encarando até que horas?”, ela disse.

“Eu… não sei. Desculpa. Acho que preciso de uma cerveja. Ou de um uísque.”

“Não. Você precisa de outra coisa.”

Ele estava prestes a se levantar da cama, mas hesitou.

“De quê?”, perguntou e abaixou a voz: “De pó?”

Ela gargalhou. Talvez algum vizinho reclamasse no grupo do Whatsapp. Principalmente a velha do andar de baixo. Era o passatempo preferido dela. Reclamar. Dos passos. Dos armários. Do barulho da descarga. Até da porra do som de uma latinha de cerveja abrindo. A velha tinha a audição de um cachorro no corpo de uma bruxa.

“Não, querido”, Elis disse, entre risos. “Algo um pouco mais profundo.”

Ele riu.

“Não, obrigado”, disse. “Acho que minhas drogas são um pouco mais leves do que a que você está insinuando.”

“Você já experimentou?”

Henrique se levantou e olhou para a janela e viu os primeiros raios de sol. Era um céu como aquele, mas em outro lugar. Outra cidade. Outra vida. A BR-040 diante deles. O LSD em suas veias. As linhas de trânsito servindo como verdadeiros trilhos para mantê-lo no controle do carro. As estrelas desaparecendo atrás dos morros. Dançavam no céu, junto com as árvores. Era uma dança bonita. Árvores, estrelas e morros unidos, balançando de um lado para o outro em ritmos diferentes.

O som do motor. A vibração do volante. Os risinhos baixos dela no banco do passageiro. O encanto dos dois. Alguma música distante saindo das caixas de som.

Ele suspirou.

“Não”, disse e saiu do quarto.

A cozinha era pequena. A bancada americana a separava da sala. Havia uma geladeira, uma torneira, um fogão e alguns armários lotados de uísque e vodca e qualquer outra bebida alcóolica que o dinheiro que ganhava escrevendo permitia comprar.

Abriu a geladeira. Escolheu uma Serra Malte. Abriu a latinha e gritou um foda-se mentalmente para a vizinha de baixo. Tomou os 350mL de uma vez. Abriu a geladeira e pegou outra lata.

Quando se virou para a bancada, Elis o encarava do meio da sala. Não vestia nada além do lençol enrolado no corpo. Podia ver a curva de seus seios e de sua cintura. Dava para ver os mamilos rosados através do lençol branco.

“Todo escritor é mentiroso?”, ela perguntou.

Ele sorriu, tomou um gole da cerveja e disse:

“Não. Mas nunca confie plenamente em um bom escritor.”

“Você é um bom escritor?”

“Não. Eu sou ótimo. As pessoas apenas se esqueceram disso.”

“Então vem pra cama. A gente pode escrever uma história mais alegre antes da noite terminar.”

Ela se virou e voltou para o quarto, enquanto abria as mãos e deixava o lençol cair no chão da sala.

Henrique virou o resto da cerveja e encarou a latinha. Que se foda, pensou. Colocou a latinha sobre a bancada e caminhou para o quarto. Talvez ela estivesse certa. Talvez pudessem escrever uma história mais alegre.

Mas ele achava que não.

Histórias alegres eram mais difíceis de escrever.

Henrique não tinha paciência para elas.

AB — 09/03/2024

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