Hope I never lose you

Gabrielli Duarte
impublicável.
10 min readOct 3, 2019

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Galeria Nacional do Canadá — Ottawa, 2018.

"I’d never walk Cornelia Street again" — Taylor Swift

Estava num dia desses, afogada em meus próprios dramas e consternada com situações que, às vezes, fazem-me concordar com a máxima de que é mais feliz quem não tem muita consciência de mundo. O saber promove uma certa inquietação ambígua, pois ao mesmo tempo que compele ao prazer gratificante de saber mais e mais, leva ao abismo profundo de compreender que quando mais se sabe, menos se sabe. É como se o conhecimento fosse a luz que lançasse alguma consciência sob a dimensão do buraco em que estamos entrando. Quando nos damos conta de sua profundidade só há um sentimento: pânico.
Nessa altura você já se distanciou o suficiente da entrada para que aqueles que nunca tiveram a oportunidade ou ousaram a empreitada possam ouvir gritos de socorro como provenientes de algo humano. Longe demais para voltar. E mesmo voltando a escuridão ensurdecedora do lado de fora talvez seria pior que o ligeiro desconforto da solidão do lado de dentro. No íntimo, vai se consolidando uma espécie de conformação. E não estou dizendo essas coisas pra mostrar como sou cool e decorei certinho aquela frase de Sócrates que nos ensinam nas aulas de filosofia. Não. Saber que não sabe nada é algo que vem assustadoramente de dentro, a cada degrau galgado nas escalas do conhecimento.
Infelizmente, talvez eu nunca alcançarei o conhecimento em níveis extremamente altos. As circunstâncias pesam muito. É preciso viver também. No meio disso tudo eu ainda sou uma menina…claro! Aos poucos a mulher que fui construindo vai se assentando e tomando conta da minha personalidade. Mas, inegavelmente, ainda sou apenas uma garota, sujeita a todas as influências possíveis do meu tempo. Não só isso, mas também passível de ser regida pelos exemplos fornecidos pela sociedade. Olhar de maneira crítica para os alicerces das imagens sociais que te conduziram até agora pode ser tão trágico como assistir no cinema, com muita pipoca e refrigerante, sua vida ruir em lentas e dolorosas cenas, com um fundo vintage e uma serenata melancólica. Nos créditos finais, não poderiam faltar todos aqueles momentos embaraçosos em que você, por um deslize, acabou sucumbindo e se enrolando nos tapetes da boa convivência, soltando uma bobagem aqui, magoando alguém ali. Isso tudo porque seu edifício estava tão agarrado naquele alicerce velho, corrompido, que já nasceu torto. Mas você não percebia a profundidade abissal de sua ignorância. Por muito tempo você age como se soubesse de alguma coisa, como se fosse um ser iluminado. Como se todos os seus pequenos desvios de caráter fossem compensados por essa sua extraordinariedade divina, resultante, talvez, de uma benção especial, de uma inspiração do além. Na verdade nem sei porque rumei pra esse lado. Bendita (?) mania de sempre rumar, rumar e rumar, mas acabar voltando pra dentro de mim mesma.
Esse egocentrismo exacerbado explica o fato de muitas vezes eu me surpreender com a beleza do céu, simplesmente pelo fato de viver tão alheia em meus próprios pensamentos que me é impossível o habito de contemplar a mais simples realidade circundante. Tento me policiar. Mas é difícil. Muito difícil. Os mundos que crio aqui dentro são fortes, dominantes. Tomam conta da minha existência, franzem meu senho, tornam-me alheia às circunstâncias do dia. Quase sempre, esses compartimentos criados pela minha mente são chuvosos, obscuros. Esmagam-me de forma endógena. Oprimem-me, encolhendo a mim em mim mesma. Como um lento processo de metamorfose corporalmente inversa. O próprio corpo se introverte. Como se quisesse dizer algo dos meus mundos interiores.
— Ajeita esse corpo, menina!
— Não dá mãe! É reflexo de como me sinto…
Bom, mas nada disso importa. Ou talvez importe. Você que sabe. Estava num dia desses, como que meus mundos interiores se construíssem feito labirintos espelhados na minha subjetividade confusa, deixando-me ligeiramente tonta. Não me lembro muito bem. Mas naquela noite havia discutido, sobrecarregando numa pessoa quase estranha todos os meus anseios, todos os meus piores medos. São tantas coisas que nem as ouso falar aqui. Seria necessário um grande livro de folhas negras, capa dura, letras douradas, cadeado, com um aviso de queime depois de ler, para escrever sobre essas considerações que motivaram aquela discussão. Entretanto, daquilo a consequência era meu dilaceramento interior. Num conflito, sempre acaba-se saindo ferido, no meu caso, é claro. Não creio ser o meu espírito o mais belicoso que tenha passado por essa terra. As palavras voam como flechas em brasa ardente. Esperando o alvo frágil. Mas a crueldade não está no confronto. Está no fato de não se seguir a linha lógica estabelecida pela natureza: o vencedor dizimando o derrotado. Não. na nossa historinha o derrotado fica íntegro para contar e recontar a história para si mesmo por inúmeras vezes. E a linha entre quem vence e quem perde é muito tênue. Não dá pra distinguir. Nesse meio tempo, as necessidades pragmáticas da vida gritavam. Era preciso fazer compras. Em meu armário, já não tinha muito mais do que muito café, alguns biscoitos e um pacote de macarrão. Precisava, inevitavelmente, passar pelo mercado, para abastecer ao menos o mínimo. Será que eu estava tão errada? Será muito errado exigir o mínimo que eu exigia? Será que é impossível encontrar um encaixe? Mas, meu Deus! Será que eu estava tão errada? Esses eram os pensamentos que rodavam nos olhos, materializando-se em forma de lacrimejo. Embaraçoso? Talvez. Mas eu já estava acostumada a chorar em locais públicos e a passar por esse tipo de vergonha. Sempre fui assim. Triste? Pelo contrário… conforme o choro se intensificava ao longo de minha vida, o riso concorrida de forma honestamente igual. E nesse misto de intensidade de emoções eu ia me construindo, aprendendo a lidar com esse meu ser que mais parece um vulcão ativo, podendo surpreender com uma síntese de emoções díspares numa só rajada. Chorei muito ao longo da vida. Não consigo me reter dentro de mim mesma. Como se fosse um rio que transborda e precisasse de margens maiores que meu próprio corpo para escoar a água em excesso. Enquanto andava empurrando o carrinho, olhava as pessoas e toda sua aparente normalidade. Tudo aquilo não parecia fazer sentido. Parece que eu acabava de perder algo que nunca tive. Uma espécie de torpor e medo tomou conta de mim. Tudo parecia confuso, desencaixado. Quando eu iria atravessar a fronteira e entrar para o lado deles? Quando meu mundo ia ordinariamente fazer um sentido, daqueles sentidos reconhecidos e patenteados pela sociedade? Esfacelada, caminhei por aqueles corredores. Morrendo por dentro. Porque um bom clichê é, às vezes, necessário. E a lua tem muitas influências no meu comportamento. Dentro de mim, vivo mais melodramaticamente que um livro do romantismo da segunda geração. Isso tudo tem hora que me dá tédio, confesso. Por isso até mesmo escrevi que proclamava a revolta dos astros e bradava contra a tirania da lua. O sol, sempre soberano no universo indignou-se com o reinado do astro secundário no meu ser, nem pediu licença e disse que ia começar a comandar minha vida daqueles dias em diante. Confesso que aceitei de bom grado. Eu queria, eu necessitava. Como se o ser humano fosse capaz de fazer a fotossíntese tal como as plantas, mas para alimentar a alma. Renovar o ar do ambiente ao redor de si mesmo.
Olhava para as pessoas na esperança de que elas, por uma inspiração divina, sacassem toda minha situação, tão real por dentro. Como se olhando, buscando fixamente na figura de algum estranho, fosse encontrar algum alento. De repente, foquei num homem de meia idade. Não se parecia com meu pai, mas poderia ser um. Ou um membro da igreja, que seja. Fiquei esperando sua súbita aproximação com palavras revigorantes, que dariam uma nova significação para minha vida, dissipando toda insegurança. Mas enquanto eu insistentemente apertava o botão que projetava uma luz de socorro para o mundo exterior, à espera de alguém que arrebatadoramente salvasse meu dia, eu não conseguia me dar conta que a única salvação estava em mim mesma. Passamos muito tempo esperando pelos outros heróis, que nunca vêm, é óbvio. Blasfemamos, então, porque praguejamos as fantasias criadas pelo mundo, de homens e mulheres incríveis, inspiradores, que existem para abalar as estruturas da humanidade. Ficamos desesperançosos, desacreditados. Isso porque não temos consciência. De que nós somos nossos próprios heróis e enquanto insistimos em um chamado inútil, perdemos tempo em fazer algo, simplesmente porque não nos achamos bons o suficiente para escalar nossos próprios muros, lutar contra nossos próprios monstros e, no fim da história, depois de intensos confrontos, ainda encontrar tempo para aquele suspiro apaixonado pela mocinha do filme: a vida.
Aprendi com um querido professor de geografia que a vida é feito caleidoscópio. Quando algo parece já não mais aprazível aos olhos, gira-se um pouquinho o instrumento e passa-se a ter uma nova perspectiva, cheia de novas cores e formas. Talvez seja esse o segredo para mudarmos o nosso olhar sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca. Mas naquele momento eu não sabia disso… ou sabia, mas preferia, por uma cegueira besta, ignorar. Com o carrinho não muito cheio, com algumas frutas, uns pacotes de pipoca, presunto e queijo, fui até o caixa finalizar a compra. De repente, algo me tomou. Será que eu faço? Ai eu não sei…não sou muito tímida, algo quem tem me ajudado muito ao longo da vida, mas naquele momento confesso uma hesitação fora do normal. Uma espécie de medo, misturada com sei lá. E a sensação de estar adentrando de maneira invasiva no íntimo de outra pessoa. Um estranho. Ela tinha um forte sotaque nordestino.
— Quer CPF na nota?
— Não, obrigada.
Não sei o motivo, mas não gostava de colocar meu CPF em compras pequenas, achava um trabalho desnecessário. Eu sabia obviamente que iria perguntar. E quando não faço? Essa cara pau conhecida carrego comigo há anos. Usei a mesma técnica da depilação: rápido e indolor; quase imperceptível.
— Você acredita no amor?
Para minha surpresa ela parou por um instante, fitou o horizonte, enchendo o ar com os pulmões, e me disse:
— Olha, eu acredito sim. Acredito mesmo. E acho que se ama uma vez só.
Ainda olhando para o longínquo, agravou o tom da voz, pensativa continuou:
— Eu amei muito um homem, mas muito mesmo. Ainda sinto o cheiro dele, o toque da pele. Eu fazia de tudo por ele.
Num tom de desabafo secreto, daqueles que só temos coragem de fazer a um estranho, ela me disse:
— Eu até entro no facebook dele para ver a esposa, os filhos. Isso tudo é tão triste pra mim. Eu amei muito esse homem. Mas eu tenho o meu marido, que tem sido muito bom pra mim, que faz de tudo por mim…espero que um dia eu aprenda a amá-lo dessa forma.
Confesso que fiquei atordoada com aquele relato. Não era o primeiro caso que eu conhecia de amor que não deu certo…aliás, essa confissão só vinha reafirmar a maioria de minhas teses. Com muitas mulheres que conversei, quase a maioria não estava casada por esse (chamemos assim) AMOR narrado pela minha ilustre companhia de alguns instantes naquele mercado. A constatação disso me doía de uma forma profunda, muito mais do que vocês possam imaginar e que eu consiga expressar aqui. Histórias parecidas eu já ouvira muito. Ama-se alguém, mas, no círculo das aparências, esse alguém é considerado “o errado”. Vale a pena lutar contra todos os paradigmas, desconstruir-se, negar toda sua estrutura por um amor? Há quem diga que não. Não julguemos. O arquétipo social é uma massa fluida. Gruda em nossos corpos de tal maneira que não conseguimos nos desprender tão facilmente e quando somos bem sucedidos no intento, sempre haverão os resquícios impregnados em nossa alma. Muitos se machucam demais na tentativa. Alguns são tão inertes e imóveis que sequer tem a consciência da matéria que os envolve, vivendo, talvez, de forma mais leve. É daqueles tipos de material que incomoda uma pessoa inquieta, pois, mexendo-se consegue compreender o quão presa está em suas tramas. Daí prefere-se guardar as grandes histórias de amor para os mocinhos e mocinhas dos filmes e novelas. Ou talvez quem sabe para os outros. A vida real demanda certas responsabilidades, na quais não sobra espaço para fantasia. Pesa-se tudo: família, religião, sociedade. E quando nos damos conta, estamos nos casando. Porque ele era bonzinho. Ah, porque ele nem era tão feio assim. Se dava muito bem com minha família, tem um futuro pela frente. Até tem uma certa estabilidade financeira. Faz tudo por mim. É uma pessoa honesta. Pode ser um bom pai pros meus filhos. É engraçado, às vezes. Nessa retórica vazia constroem-se pontes jurídicas sólidas, sedimentadas por assinaturas, contratos, certidões, fotos, e tudo mais que você possa imaginar. E os sentimentos vão sendo empurrados cada vez mais para o quartinho dos fundos do canto do coração. Suspiros? Romance? Talvez tudo tenha sido uma invenção barata da mídia para vender novela ou de escritores malucos que morreram jovens, bêbados e depressivos. A vida clama por eficiência. Racionalizar os sentimentos parece ser a resposta mais plausível. Assim, vão se construindo laços fictícios, sem fundamento, industrializados pela lógica da sociedade.
Mascarados e oprimidos, os sentimentos restam como que pedindo desculpas pela sua existência, reduzindo-se a meras lembranças daquilo que nunca fora. Onde é que ele se perdeu? Na imensidão de cada prédio? Nas esteiras de rolagem? Nos caixas do mercado? Saí de lá bem abalada. Só conseguia pensar em uma música antiga que fazia muito sucesso no tempo de meus pais. A música falava sobre um amor guardado em silêncio, que não soube se fazer. Veio o convite de casamento: surpresa. Os versos mais emocionantes, nos quais até a melodia parece atingir o pico da emoção arranjada de forma a cultivar os mais estranhos sentimentos, diziam que num cantinho rabiscado na parte de trás havia a seguinte frase: “estou casando, mas o grande amor da minha vida é você”. Recordo-me de um dia que obtive uma confissão espontânea e surpreendente. Uma pessoa próxima havia me confessado no silêncio de uma manhã ordinária que havia amado muito alguém. Mas que seu pai não aprovava a relação. Além de o moço não dispor de condições para o casamento. Daí conheceu o seu marido. Era um homem honesto. Se dava muito bem com o seu pai. Acabou juntando os trapos. Afinal, é o curso natural da vida, não? Clamamos pelo enquadramento, nem que para isso seja necessária a criação de um castelo de ilusões e sentimentos cujos alicerces são inexistentes. A esposa de César não bastar ser fiel. Ela tem que parecer fiel. Tudo faz parte da lógica do status quo que nos mantém confortavelmente alojados em nós mesmos. No meio do caminho? No meio do caminho havia uma pedra, que todos ignoraram e seguiram de cabeça baixa sem pensar muito para onde estavam indo.

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