Hora de Escrever

Alexandre Brandão
impublicável.
4 min readMar 3, 2024

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Photo by Liv Bruce on Unsplash

Chovia e o bar estava tão apinhado de pessoas que o vento que vinha da praia não afastava o calor. As mesas amontoadas e as pessoas espremidas e os garçons se contorcendo pelos corredores e a voz arranhada do Cazuza saindo pelas caixas de sons penduradas nas paredes. Cervejas suadas congelavam dentro dos cascos e os fumantes se embarreiravam na porta, tentando se proteger dos pingos de chuva enquanto sopravam a fumaça para o céu.

Ele era um deles. Dos fumantes. Segurava o Marlboro vermelho pela metade entre o indicador e o médio. Na outra mão estava seu copo de cerveja. Americano. Quase no fim. Ele encarava o interior do bar enquanto pensava em como não se parecia mais com os velhos dias.

Não, os velhos dias acabaram e eu segui em frente. Mas só não conseguia entender como tudo aquilo…

“Ei”, disse uma garota que acendia um cigarro preto.

Não pareceu nada além de um sonho.

“Você é quem eu tô pensando?”

“Eu?”, ele disse.

“Sim. Você.”

Ela soprou a fumaça para a chuva.

“Depende.”

“Depende do quê?”

“Tantas coisas que eu não sei nem por onde começar.”

“Hum. Adoro suas histórias. Você já tá bêbado, não tá?”

“Eu sempre tô bêbado.”

Ele olhou para a sua mesa com o canto dos olhos. Os outros não sentiam sua falta. Estavam muito além do ponto de sentirem qualquer coisa. Um casal tentava sair do bar. Tropeçavam nas mesas e ninguém reparava. Bem, os garçons reparavam. Com suas bandejas na mão, tentavam ajudá-los sem derrubar os copos e as cervejas e as doses de uísque barato.

Um homem deixou o cigarro cair no piso molhado. Uma mulher derrubou um copo. As caixas de som pararam de funcionar e o vento de repente parou de soprar. A chuva continuou caindo, mas parecia querer parar. À distância, no meio do oceano, dava para ver algumas estrelas surgindo no céu.

“Posso tirar uma foto com você?”, disse a garota.

“Você ainda tá aí?”, ele falou.

A cerveja tinha acabado. Precisava voltar para a mesa… ou não. Fez um gesto para Fred, um dos garçons. Fred viu, balançou a cabeça de um lado para o outro, enquanto calculava o trajeto e abriu um sorriso cansado e se virou para o freezer.

“Posso?”, perguntou a garota.

“Pode o que garota?”

“Tirar uma foto.”

“Tira logo a porra da foto.”

“Você podia pelo menos sorrir?”

“Posso tentar.”

Ele tentou. Ela não pareceu gostar muito da tentativa. Os dois estavam com os cigarros enfiados no canto da boca. Não tinha muito espaço para ela esticar o braço para fazer a selfie. Uma mulher fumando ao lado deles reclamou e derrubou um pouco de cerveja no homem do outro lado. O homem a encarou com raiva, mas não disse nada.

Fred surgiu no meio da chuva com a Império de 600mL aberta, saindo fumaça pela boca.

“Acabaram os cascos”, ele disse.

“Me dá ela e leva esse copo. Vou tomar no bico.”

“Você que sabe.”

“Posso fazer uma pergunta?”, disse a garota.

“Você ainda tá aqui?”

“Posso?”

Ele tomou um terço da cerveja de uma vez.

“Pode o quê, porra?”

“Fazer uma pergunta.” Ela acendeu outro cigarro. Ele revirou os olhos, mas assentiu. “De onde vem suas ideias?”

Ele sorriu. Chegou muito perto de dar um soco no meio da cara dela. Mas se conteve. Os velhos dias acabaram. Ele não queria ser preso. Ainda tinha coisas a escrever.

Era por isso, ele pensou. Por isso que se parecem com um sonho. Porque os dias e as noites e os segundos e os minutos e as horas se confundem. Tudo passa rápido demais.

“Chega aqui”, ele disse.

Ela se aproximou.

Ele encostou a boca no ouvido dela e lambeu até sentir um gosto salgado. Ela não se afastou e ele a respeitou por isso.

“As minhas ideias… bem… tiro todas elas do cu”, disse.

Ela o encarou com uma expressão engraçada que ele preferiu ignorar. Ele tirou outro cigarro do maço e acendeu. Procurou por Fred com os olhos. Trocaram olhares. Ele fez um gesto para colocar na conta. Fred apontou para a mesa.

O da mesa também?, era o que o garçom queria dizer.

Tanto faz, ele respondeu.

Então se virou para a saída e tomou o resto da cerveja e colocou a garrafa de vidro em um canto. Deu alguns passos debaixo da chuva, mas ela não demorou a parar. Virou-se para o bar uma última vez. A garota ainda o encarava com a mesma expressão.

Ele sorriu, soprou a fumaça para o céu nublado e seguiu seu caminho.

Era hora de escrever.

AB — 25/02/2024

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Alexandre Brandão
impublicável.

Às vezes um cigarro é só uma fumaça e uma história é só uma história