Macho Man

João Gabriel
impublicável.
4 min readDec 21, 2023

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Interessante pensar como certos signos culturais sempre estiveram associados a uma determinada identidade no mundo: força, honra, coragem e até mesmo cultura sempre estiveram associados ao gênero masculino, por exemplo, enquanto delicadeza, sensibilidade, habilidade com tarefas domésticas ao feminino. Logicamente, vivemos em uma época onde muitos desses signos estão sendo reinterpretados e ressignificados em suas correlações com as diversas formas identitárias. No entanto, também existem riscos, como salienta Judith Butler, se a tentativa de ressignificação fracassar, existirá um sério risco de haver uma legitimação simbólica dos signos e valores que já estão vigentes na dominação masculina. Um risco muito corrente, por exemplo, em discursos feministas, quando da tentativa de se apropriar de práticas e valores masculinos visando sua ressignificação. Além disso, talvez o maior dos riscos resida na reprodução das estruturas de dominação vigente pela representação de um “Sujeito Ideal” no discurso, ou seja, um tipo ideal de persona a qual deve ser alcançada ou imitada em seus comportamentos e mentalidade. Ao criar “tipos ideais” de mulheres feministas com determinadas práticas e mentalidades, por exemplo, incorre-se no risco de reproduzir a mesma estrutura de Poder que o sistema valorativo masculinista sempre impôs.

Uma outra crítica, Olívia Gazalé, irá afirmar justamente que essa composição de “tipos e/ou modelos ideais” na construção de identidades socioculturais é o que mais possui de tenebroso e ditatorial no sistema masculinista. Desde os tempos antigos, passando por diferentes épocas até os dias atuais, o Masculino, que já fazia sua força frente ao Feminio (ou não-masculino), encontrou um meio de obter mais poder, reconhecimento e influência no campo das identificações: a virilidade. A virilidade se torna uma ideologia que visa abrigar aqueles que se qualificam em uma masculinidade superior, digna, poderosa, criando um abismo entre o homem viril e o não-viril. Dependendo da sociedade e da época, os atributos definidores da virilidade variam, mas podem ser apropriados tanto por homens quanto por mulheres e, em geral, se manifestam em certos padrões: liderança; postura ativa; força; espírito guerreiro; senso de proteção da honra; sagacidade; perspicácia; habilidades práticas e etc. Baseado nessa ideologia histórica, diversos modelos arquetípicos serão construídos como reflexos da encarnação da virilidade naquela sociedade. Desde os semideuses e heróis gregos como Aquiles, Heitor e Ulisses; Perseu, Teseu, Hércules e etc, passando por nomes nórdicos como Thor; Odin; Tyr até os lendários imperadores romanos como Júlio César, Otávio Augusto, Marco Aurélio e etc.

A ideologia da virilidade se propaga no mundo medieval com a disseminação do masculinismo presente no discurso cristão e nas diversas culturas presentes no continente europeu, desde aquelas “herdadas” como a cultura greco-romana até as distintas culturas germânicas em cada região, em cada reino. Alguns personagens míticos já são santos desde o fim da Antiguidade, como São Jorge e Santo Expedito por exemplo, também podemos ver sua influência se propagar na imagem do Arcanjo Miguel quando bravamente luta contra a Besta Maligna do Apocalipse, liderando o exército de Cristo. Mas a Idade Média terá os seus heróis que podem ter se tornado santos ou não, mas que estiveram presentes em seu imaginário. Rei Arthur e o Imperador Carlos Magno (este se torna santo no século XII), bem como os lendários cavaleiros da Távola Redonda serão exemplos notáveis, mas não esqueçamos também de personagens icônicas criadas como o Mago Merlin e Robin Hood. Há muitos santos e santas que se tornaram tais graças ao cumprimento de requisitos morais feitos pela Igreja, isto é, requisitos morais devotos de um sistema cultural enraizado em valorações masculinistas e ideologias da virilidade. Se levarmos em conta que a maioria dos santos e santas possuíam fortes ligações, direta ou indiretamente, com as aristocracias locais… veremos que a construção da santidade não é apenas política e ideológica, mas politicamente e ideologicamente voltados para a manutenção de um sistema simbólico-valorativo-cultural de dominação masculina — não apenas sobre o feminino (seu “oposto”), mas sobre o Outro (o estrangeiro; estranho) e o não-viril.

Me concentrei em falar dos europeus pela influência história, gostemos ou não, que exerceram sobre nós e exercem até os dias atuais. A religião, a cultura e o imaginário são os melhores veículos de transmissão e manutenção desses discursos. Desde o século XVI, pelo menos, nós aqui do continente sul-americano travamos contatos diretos com os europeus e nunca mais paramos. O Cristianismo continua sendo a religião mais influente que possuímos e o dito “Paganismo” associado a todas as religiões que não de matrizes cristãs continuam sendo perseguidas até os dias atuais. Não há total necessidade, eu sei, mas justifico mesmo assim, pois há a necessidade de colocarmos vias ideológicas opressivas e autoritárias em perspectiva crítica. Importante que reflitamos, por exemplo, o quanto a figura arquetípica do Herói Cristão Cavaleiro continua sendo consciente ou inconscientemente, um ideal de virilidade perseguido por muito de nossos contemporâneos. Quantos matam e morrem na busca por esse reconhecimento? Quantos querem ser vistos como o “Macho Bárbaro; Selvagem” ou ainda “O Malandro”, nessa busca intermitente? Feliz ou infelizmente, é preciso reconhecer que ao menos parte de nossa identidade sociocultural foi construída na associação com o Masculino Cultural Europeu fundamentado em ideologias medievais de virilidade judaico-cristã em comunicação com outras oriundas do paganismo germânico e do mundo islâmico. Como disse Olívia Gazalé, a Virilidade se torna, portanto, uma armadilha para todos os Sexos. Acrescento, ainda, para todas as formas de Cultura.

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João Gabriel
impublicável.

E não sabendo que era impossível, ele foi lá e soube...