O HERÓI MEDIEVAL E A CULTURA POP CONTEMPORÂNEA

João Gabriel
impublicável.
6 min readJan 29, 2024

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Por favor, se você é um amante de produções culturais contemporâneas, pare o que estiver fazendo e me diga: com quantos filmes e/ou livros e/ou séries/novelas e/ou peças de teatro e/ou músicas e/ou obras de arte você interagiu ultimamente? Quantas produções dessas, por acaso, se ambientava em algum contexto medieval? Depende de cada um, eu sei. São gostos. Pra uns, mais. Pra outros, menos. Mas a grande maioria, imagino, deve ter em mente alguma(s) obra(s) que se passam no período tido como medieval.

Geralmente, as pessoas costumam lembrar de Vikings (2013); Game of Thrones (2011); The Witcher (2019); The Last Kingdom (2015) e quando se trata de filmes, os mais aclamados e logo citados são Coração Valente (1995) ou O Nome da Rosa (1985), quando não a aclamada trilogia de O Senhor dos Anéis (2001–2003). Algumas animações como O Corcunda de Notre-Dame (1996); a série de filmes Shrek (2001–2010) e ainda Valente (2012) são alguns exemplos de longa lembrados. Produções que ainda se inspirem nas crônicas do Rei Artur são extremamente comuns no âmbito das contextualizações medievais, como As Crônicas de Artur (1995–1997), escrita por Bernard Cornwell ou filmes como Excalibur (1981); Rei Artur (2004); Rei Arthur: A Lenda da Espada ou ainda a aclamada comédia Monty Python em Busca do Cálice Sagrado (1975). Não quero aqui entrar no mérito de discutir a qualidade técnica das produções e nem o gosto pessoal de quem as apreciam. Mas quero chamar atenção para alguns fatores que norteiam a imensa esmagadora maioria das produções com contextualizações medievais e que se pretendem, em muitas ocasiões, possuírem algum rigor crítico com conhecimento acerca do mundo medieval. O resultado, na verdade, é mais uma contribuição com a completa estereotipização da Idade Média nos dias atuais.

Se olhar com cuidado, verá que a maioria das produções citadas e, na verdade, a maioria das produções que aludem de alguma forma ao mundo medieval possuem a grave tendência de quase sempre buscar a retratação de um mundo obscuro, imerso em guerras, longas batalhas e grandes guerreiros. Péssimos governantes e princesas cobiçadas. Monstros ferozes e a maldade e desconfiança como maiores características das pessoas comuns. Isso pra não falar das doenças… Chama atenção a quantidade de retratações de um certo tipo de heroísmo civilizador e masculinista, quase sempre cristão ou viking. O espaço para contextos ligados ao universo plural de culturas marginalizadas e protagonistas não-guerreiros e não-masculinistas no medievo é pequeníssimo. Essa visão estereotipada do mundo medieval talvez seja fruto de leituras anacrônicas do período, já que muitas temáticas e conceitos presentes nos enredos são oriundos da contemporaneidade, como por exemplo o patriotismo norte-americano com seu alter ego escocês nas lutas de um William Wallace interpretado por Mel Gibson contra o reino da Inglaterra em Coração Valente. O sentimento patriótico de pertencimento a uma Nação tal como o temos nos dias atuais era absolutamente desconhecido pelos medievais. Bem como a tradicional ideia marxista de uma luta dialética de classes. Não há, também, comprovações de um código de conduta muito bem delimitado entre guerreiros de épocas e regiões diferentes. É bastante improvável que o herói guerreiro seja o mesmo em Vikings e The Last Kingdom (Séc. IX) e nas produções que acercam o mito do Rei Artur (Séc. XII) como em Lancelot, o Primeiro Cavaleiro (1995). Que por mais interações culturais tivessem, guerreiros oriundos de culturas cristãs e pagãs possivelmente possuíam códigos de honra e conduta bem distintos.

De qualquer forma, a brutalidade; a coragem; a força; o senso de proteção à família ou à honra; a busca por vingança; a proteção aos valores conservadores tradicionais e a busca por liberdade, além das habilidades técnicas e capacidade de sedução são características presentes em praticamente todas ou quase todas as representações de protagonistas do mundo medieval, seja de quais culturas originárias forem. Em produções como Cruzada (2005); Robin Hood (2010) e grande parte das outras já citadas, os protagonistas são praticamente todos heróis, pertencentes ao que culturalmente associamos como Masculino, em todos os sentidos. Heróis guerreiros e masculinistas só poderiam ter como pano de fundo um cenário turbulento com inúmeros desafios, monstros e/ou pessoas perversas no caminho. Toda rota está traçada para o seu destino, o retorno triunfal. Tal concepção da “jornada do Herói” teria alcançado prestígio e ampla divulgação no cenário acadêmico do Pós-Guerra com as análises do mitologista americano Joseph Campbell (1904–1987) sobre a estrutura narrativa de mitos antigos. Apesar de um tanto anacrônicas, suas análises acabariam influenciando, conjuntamente com as contribuições da Escola de Frankfurt, as produções culturais norte-americanas da segunda metade do século XX. Ao que parece, a estrutura narrativa da “jornada do Herói” se faz presente em diversos roteiros de filmes, séries e livros do período. As que protagonizam o cenário medieval não ficam para trás…

Mas o quão problemático tudo isso é? Para início de conversa, não há consenso sobre a univocidade dos papéis correspondentes ao gênero masculino na Idade Média. Sem dúvida as exigências existiam, mas seu cumprimento variava em uma sociedade tão culturalmente complexa como aquela. Isso sem levar em conta a própria variabilidade de sociedades, regiões e épocas cujas mudanças de exigência e cumprimento de normatividades se configuram. Em suma, talvez o masculino não fosse tão Masculino assim e o feminino talvez não fosse tão Feminino também. O jogo das identidades se torna mais complexo conforme o nível de interações de cosmovisões e culturas distintas se aprofunda. Não podemos, portanto, falar de identidades socioculturais fixas e muito bem delimitadas no medievo. Da mesma forma, não podemos enquadrar com precisão o que de fato significava o Masculino, o Feminino e a alteridade nessa época, mesmo com todas as delimitações discursivas provenientes do cristianismo dominante.

Então, a quem serviria a representação de heróis guerreiros, civilizadores, masculinistas e honrosos como protagonistas de enredos medievais se tal representação não demonstra compromisso algum com o rigor crítico do conhecimento medieval e nem com os parâmetros de uma cultura pop desconstruída? Talvez seja a insistência da contemporaneidade em imaginar uma Idade Média constantemente masculinizada. Talvez sejam os ideais de virilidade do mundo contemporâneo se sentindo ameaçados pelos discursos de alteridade que reivindicam seus direitos e espaços de sociabilidade. Talvez, os pequenos componentes e engrenagens da Indústria Cultural em seus diversos setores bem como grupos políticos devidamente assentados em seu exercício de influência sobre o senso comum. Ou talvez sejamos nós, tão anestesiados pelo impacto que nem trazemos à tona a necessidade de questionamento…

A imitação ou ainda a simples naturalização dos comportamentos masculinistas diria muito sobre a nossa própria sociedade. Os arquétipos culturais e valores simbólicos mais aclamados socialmente sendo representados na figura dos heróis medievais refletiriam a própria concepção do que é ser um “homem de verdade” — isto é, uma identidade masculina socialmente reconhecida e valorizada. Importante ressaltar que, não necessariamente, tal identidade somente pode ser encarnada e desempenhada por homens hétero/cis, ainda que haja uma maior probabilidade. O maior receio, no caso, é o quanto o discurso representativo do heroísmo masculinista (em todos os contextos, mas aqui, especialmente o medieval) pode contribuir com a manutenção de estruturas narrativas que propaguem um regime de dominação cultural de uma heterossexualidade compulsória e viril, valendo-se ainda da automutilação masculina oriunda do famoso “complexo de herói”.

No entanto há boas iniciativas no meio, digamos assim. Há esforços importantes que, havendo ou não grandes intenções de criticidade, acabam por traduzir de maneira mais satisfatória noções do mundo medieval. Alguns o fazem por meio da crítica exatamente a esse tipo de masculinidade heroica e guerreira, tão necessitada de se provar e de demonstrar sua superioridade aos demais. Produções como Berserk (1989) e Vinland Saga (2019), além de apresentar as características citadas, lançam luz a um mundo cujas noções de Natural e Sobrenatural; realidade e fantasia andam bem justapostas, refletindo as nuances das mentalidades medievais. Outras produções, como O Nome da Rosa (1985); Em Nome de Deus (1988); Papisa Joana (2009); O Físico (2013) e O Rei (2019) não parecem buscar objetivamente o enaltecimento da figura do herói guerreiro e masculinista, procurando ainda pôr o cristianismo tradicional em uma perspectiva crítica. São esforços importantíssimos - para não deixar de citar a espirituosidade de Shrek, por exemplo — e que sem dúvida parecem progredir, mas estão ainda longe de alcançar uma simbiose satisfatória entre entretenimento e teor crítico, de modo a se comprometer com uma razoável contextualização histórica para o avanço na retratação de questões importantes para a época e o debate de questões atuais. No entanto, são eles que não nos fazem perder a esperança.

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João Gabriel
impublicável.

E não sabendo que era impossível, ele foi lá e soube...