O meu gozo é ser lida

Júlia Palhardi
impublicável.
6 min readApr 19, 2023

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Jen Mazza, Books and Fingers, 1972

Ser lida é a minha maior vaidade e também minha maior vulnerabilidade. É como se eu estivesse tirando as roupas, os brincos, as máscaras para alguém tatear meu corpo com o olhar. É uma nudez da alma e isso me causa tanta adrenalina que vicia.

Em todos os meus encontros, saio de casa carregando na bolsa o peso da expectativa de que em algum momento da noite vou falar sobre o prazer que é para mim escrever. Em muitas vezes funciona, em outras não.

É indissociável da minha personalidade: o texto vem encarnado na minha língua e em algum momento da minha história eu introjetei que o encontro amoroso iria dar conta disso.

Tudo começa quando eu pressuponho que o outro vai captar minhas pistas. Vai sondar minhas páginas, vai apalpar minha pele como se quisesse ler em braile as minhas entrelinhas.

Hoje em dia, aliás, discutir sobre o meu projeto de mestrado — porque é sobre isso que eu tenho me debruçado enquanto escritora, no momento — tem sido a minha preliminar preferida. O mesmo acontecia quando eu estava escrevendo o livro-reportagem do meu trabalho de conclusão de curso. Eu fico obcecada. Eu falo sobre minha pesquisa 80% do tempo. E nos outros 20%, eu espero alguém falar sobre ela.

Fases assim da minha vida se atravessam em características muito comuns: em ambas, por exemplo, estive solteira. Inteiramente só. Fico ocupada demais amando o meu trabalho para conseguir amar alguém. Toda a minha libido vai para a escrita. E talvez seja exatamente por isso que, no momento de imensa teimosia de insistir em me relacionar, eu tente unir as duas coisas.

Esses tempos eu estava saindo com um cara e, depois de alguns encontros, me peguei num limbo de frustrações. Entre as várias que eu poderia listar, o que mais me decepcionou — e não pela primeira vez — foi o fato de não estar sendo ouvida.

O fato de não estar sendo ouvida ou o fato de não estar sendo lida?

O Victor, vamos chamá-lo de Victor, não me perguntava como tinha sido a reunião com minha orientadora. Victor passava horas falando dele sem perceber que eu já estava começando a bocejar de tanta apatia. Victor não deu a mínima para a mensagem que enviei contando sobre a última aula que eu dei. E assim, de pouquinho em pouquinho, eu fui me sentindo uma sonsa que só ia se diminuindo, se calando, se diminuindo para caber debaixo de um guarda-chuva minúsculo que de nada me protegia dessa enorme tempestade de palavras encharcadas de testosterona.

Isso é inadmissível para mim. Muitas vezes no passado já tentei exigir esse impossível: implorar que o outro me escute. Que bobagem. É como implorar que um cego me veja, é como suplicar que um deprimido me faça rir até a barriga doer. Já hoje, hoje quando percebo que estou comprimindo meus contornos afetivos e intelectuais para caber numa realidade alheia, eu desisto. Visto minha roupa, dobro a toalha por educação e a deixo em seu canto. Não, eu não vou dar conta de ensinar macho a me ouvir. Eu nem falo tanto assim. Ou você me escuta, ou eu vou embora.

Então, eu poderia ter usado qualquer argumento para terminar com o Victor. Mas, no ápice da justificativa que ele me pediu, deixei o ato falho escapar: faz dois meses que você me conhece e até hoje não sabe o que eu estudo no meu mestrado! Você sabe, Victor, sabe sobre o que eu escrevo? Diz. Dois meses e em nenhum momento você perguntou sobre a minha pesquisa.

Como um homem quer que eu tenha tesão por ele na cama se na mesa de bar ele não demonstra interesse e curiosidade pelo o que mais me dá tesão na vida? Falar sobre a minha escrita me excita: faz jorrar água na minha boca.

Na última sexta-feira, enquanto esperava na fila do banheiro de uma festa numa república, conheci um garoto. Já estava chegando a minha vez de entrar naquela insalubridade para fazer xixi azul cor de corote quando ele perguntou o que eu fazia na Unicamp. Comentei do mestrado. Ele, então, quis saber mais sobre a minha linha de pesquisa. Não, imagina, é muito difícil explicar. Repliquei, como quem se faz de difícil. E daí? Me conta, eu realmente quero saber. Ele disse, com uma mão apoiada na parede atrás da minha cabeça. Contei em meia dúzia de palavras porque, nesse momento, eu já estava com tanto desejo nesse homem que antes mesmo de chegar na metodologia eu já avancei no seu pescoço tal qual uma leoa avança em uma presa para o abate. Enfiei a minha língua na boca dele querendo engoli-lo.

Refletindo sobre isso, acabo de me dar conta de o porquê, no ano passado, o encontro com um menino em específico mexeu tanto comigo. O petistinha do panfleto, minhas amigas vão lembrar, foi com quem eu tive o melhor encontro de todos os tempos: conversas avassaladoras com olho no olho, escuta atenta e saliva regadas à muita cerveja. O contraditório foi que eu passei a noite toda falando sobre os meus prazeres da vida, mas quando fui por ele incitada a comentar sobre o tema da minha pesquisa, já havíamos pedido a conta. E, numa inconsciente tentativa de prolongar esse momento, falei: da próxima vez eu te conto!

Da próxima vez. Engraçado. Da próxima vez. Parece que joguei uma bola enorme e pesada para as mãos dele. Tipo: segura essa responsa aí.

Ao ir embora da minha casa, na manhã seguinte, ele mesmo reforçou jogando a bola para mim: a gente se fala para marcar o dia em que você vai me contar sobre a sua pesquisa!

Fechei a porta em êxtase. Embora tivesse transado, meu orgasmo ficou para outro dia. Eu só iria gozar quando falasse sobre meu trabalho. Esse garoto me consumiu, fiquei louca esperando pelo segundo encontro que… não aconteceu.

Ele desapareceu.

Fiz um bico de choro feito uma criança cuja mãe não deixou subir no palco de uma festa. Não subi no palanque para falar por três horas ininterruptas sobre o que consome meus sonhos e minhas páginas por esses dias.

E agora, o que eu faço com essa bola?

Eu só enviei uma única mensagem. E aí, tudo bem? Como foi sua semana? E recebi um vácuo avassalador. Ele nunca respondeu. Queria, na verdade, ter mandado: pelo amor de Deus, Lucas, me encontra na próxima sexta-feira! Em qualquer lugar! Qualquer horário! Eu preciso te contar o que eu estudo no meu mestrado e, assim, quem sabe, você vai ficar apaixonado por mim. Você vai achar tão, mas tão legal o tema da minha pesquisa e aí, talvez, só talvez, eu vou começar a acreditar que fui eu mesma que inventei essa maravilha. Hein, Lucas? Dá para fingir que é meu pai e sentir orgulho de mim? Não importa que a gente só tenha se visto uma vez na vida e que você não entende bulhufas de linguística ou análise de discurso e que você tenha cinco anos a menos do que eu e que você esteja apenas na graduação, dá para você fazer o favor de jogar um punhado de confete na minha cara e ser a validação que eu preciso? Queria ter enviado, mas fiquei em silêncio. Quem sabe, quando eu terminar a dissertação, eu não imprimo uma cópia e mando entregar na casa dele?

Enfim, tudo isso para dizer que falar sobre o ato de escrever é, pelo menos em meu inconsciente, o meu melhor recurso de sedução. Falar sobre a delícia que é para mim bater os dedos no teclado de um computador. Falar sobre como é satisfazer o meu desejo de vingança friccionando o lápis no papel. Falar sobre como me sinto possuída quando entro no estado meditativo da escrita. Falar sobre como meu corpo flutua e embala num ritmo só dele, fazendo-me esquecer de tudo ao meu redor porque, quando escrevo, é como se no mundo nada mais importasse ou existisse.

Falar da minha escrita, porém, talvez seja o prólogo. O clímax, eu assumo: está em ser lida. Te juro por Deus: toda vez que ouço “li o seu texto” acontece um orgasmo aqui dentro. É tão suficiente para mim que, muitas vezes, eu nem preciso mais sair com a pessoa. Não preciso mais transar com você. Já conquistei o que eu queria. Flertar para que? Continuar o que? Você já passou a madrugada lendo o meu ensaio. Ou seja: gozei. Já consegui o que eu queria de você. Próximo.

Esse texto, embora visivelmente autobiográfico, não possui compromisso algum com a realidade. Se você chegou até aqui, obrigada por me fazer gozar. Se você também gozou e quiser me contar, deixe suas palmas, faça um comentário e vamos ser amigos no Twitter ou Instagram.

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Júlia Palhardi
impublicável.

Fascinada pela arte de ouvir pessoas e transformar as sutilezas do cotidiano, em poesia. Jornalista, escritora, atriz.