[Pó de
poesia no
posto
?]

Janaína Steiger
impublicável.

--

Entro no portão
que marca a entrada
do oitavo mês
de um posto de saúde
à céu aberto

Readaptado com medidas de segurança
sanitária
asséptica
estéril

E insegurança
humanitária
relacional
e afetiva

Fluxos de atendimento constantemente alterados entradas multiplicadas caminhos desarticulados labirínticos corredores que parecem não se cruzar e quando cruzam parecem co
li
d i r.

Falta ar.

Corro

Uma grande fila de olhos forma-se do lado de fora do posto
Um fora que é meio
dentro
- onde começa o posto?
Onde inicia o cuidado?
Até onde alcança a nossa voz?

Desacelero.
Res
piro.

Primeiro contato
Através do portão
que chega antes
do escudo facial
e da máscara cirúrgica
Que chegam antes de nós
Com-tato por meio dos olhos
Encontro de retinas
que travam diálogos
de milisegundos

Olhos que falam baixinho — em dialeto o qual aprendemos a decifrar

[Mareados, transbordando em dor.]
-No que eu posso te ajudar?

[Evitativos, embaraçados.]
-Quantos preservativos vai querer? Pego pra ti, não tem problema

[Inquietos, olham para todos os lados.]
-Pode falar, temos tempo — to aqui pra te escutar.

quem dera
-Queria ter tempo para te escutar, mas pode passar.

[Sinalizantes, apontam com a retina o que buscam.]
-Está com a receita? A farmácia é logo ali.

[Penetrantes, pousam, e ficam.]
-Lembro de ti, a dor continua?

Olhos de quem fica
Então já poliglotas
na arte da comunicação
E omissão

Aprenderam a exacerbar sua reações
urgem em
transmitir sentimentos
acolher
cuidar

Hoje piscam mais, abrem mais,
talvez tenham ganho
algumas
linhas de expressão
externas

E quem sabe
onde
se darão
as internas

Do medo
que o olho cala
Da lágrima que entra
pra não sair

Do arroxeado que emoldura o olhar
lembrando o cansaço
que o corretivo
não dá conta
de esconder

O diálogo do olho é seguido pela voz.
Por detrás da máscara
Ela ambienta
É ela que acolhe
É ela que se esforça
por ficar

Dar borda
emoldurar
a imagem
do posto
aos
pe
da
ços,
à céu
aberto.

Onde pátio virou sala
Pátio de espera
uso contínuo
até perdurarem os sintomas pandêmicos
Pátio de consultas
se necessário
Pátio de encontro
de trocas entre colegas
entre acolhimentos
no portão

Profissionais da saúde
A compartilhar causos
notícias
dores
amores
Humanos

“Então minha nutricionista também come?”
“Também pode doer na minha psicóloga, afinal?”
Os olhos e ouvidos atentos de quem espera
parecem sussurrar
ali
no pátio

Onde enfermeira é um pouco vigilante
Nutricionista é um pouco assistente social
Vigilante é um pouco psicólogo
Agente de saúde é um pouco enfermeira
Assistente social é um pouco nutricionista
Psicóloga é um pouco agente de saúde
Não necessariamente nessa ordem
Estruturalmente
nesse gênero

Onde o tanto que não conseguimos ser
Desestabiliza
E se refaz

No encontro
Com quem não consegue
Nem precisa
Ser o que somos

E do atrito entre
nossas verdades
cristalizadas
como pedras
faísca

E reacende o brilho
no olho
do que é multi
inter
quem dera trans
disciplinar

__

Janaína O. Steiger
Psicóloga residente em Saúde da Família e Comunidade
Atuante em Unidade de Saúde da Atenção Primária do SUS — ou, ‘postinho’

--

--