Papel carbono

A mimesis de um mundo inacessível

Gabriel Schincariol Cavalcante
impublicável.
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12 min readJun 2, 2024

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Viemos a este mundo absolutamente despreparados. Não é uma surpresa que já cheguemos chorando, um sinal de Boa Saúde: é uma surpresa que não choremos por mais tempo, talvez o tempo todo. Viemos a este mundo absolutamente despreparados e vamos, pela arte da imitação, compreendendo seus meandros, seus trejeitos, praticando um contínuo jogo de tetris em que nos encaixamos e somos encaixados na dinâmica da vida cotidiana. Munidos de um inato sentimento de inadequação, tentamos superar o choque inicial a partir do que aprendemos pela observação, pela audição, pelo toque: vemos o mundo que nos cerca e tentamos entrar na dança, que já acontece muito antes de nós chegarmos e vai continuar muito depois de nós partirmos — com sorte, acertamos o passo; na maior parte do tempo, não. Na ausência de instruções claras, buscamos preencher nosso despreparo com o que temos a mão e vamos deixando os rastros desse esforço pelo caminho, pelo bem, pelo mal. A Bíblia. O Alcorão. A Fenomenologia do Espírito de Hegel. Os Seminários de Lacan. O Capital de Marx. Assista a seguir do Netflix. Um intenso rastro do esforço humano pelo seu objeto favorito: a si próprio.

Com ele não foi diferente: veio ao mundo e a primeira coisa que fez foi, para alívio da mãe, abrir um berreiro. Sinal de Boa Saúde, disse o médico com o corpinho trêmulo em suas mãos. Do primeiro choro em diante, ali estava o embasbacamento constante em face do mundo. Tudo lhe era estranho, extraordinário. O universo era por inteiro desconhecido, inacessível pela linguagem, que ele ainda não possuía. Mas a ele, como com todos nós, foi feita a promessa de que um dia tudo aquilo faria sentido. Que é da vida mesmo o instante de absoluto espanto, a ser reduzido de pouquinho em pouquinho, conforme vamos dando conta de quem somos, do lugar que ocupamos, da língua que falamos. Que é preciso suportar o profundo medo que sentimos diante desse mundo enorme enquanto somos pequenos — nós também crescemos, é o que a promessa nos diz. E ele, como todos nós, não teve outra opção a não ser acreditar na promessa.

Assim como a maior parte das promessas, mesmo as bem intencionadas, esta para ele não se concretizou. Pelo menos não completamente. Entre compreender o mundo e pertencer ao mundo existe uma distância por vezes intransponível. Ia tomando nota das coisas que o cercavam, ficando ciente dos seus funcionamentos, sem nunca superar a sensação de que algo faltava, ou, melhor, que algo sempre sobrava: uma barreira entre ele e todo o resto.

O que podia fazer ela bisbilhotar por cima da barreira, espiar aquele mundo que lhe prometeram, mas no qual nunca entrou totalmente, apesar de estar, desde o primeiro choro, em seu seio. Era como se sentia quando a mãe lia histórias antes dormir. Não para dormir: antes de dormir. Era incapaz de dormir no meio de uma história, ficava muito concentrado no que estava ouvindo para deixar o corpo relaxar. A mãe tentava esconder o cansaço e as vezes seus olhos vacilavam em piscadas mais lentas, mas o menino insistia: continua, mamãe, continua. Seu interesse era de uma profundidade quase científica, procurava nas palavras e frases da história fragmentos de si, que, juntos, poderiam formar um todo coeso. A mãe continuava. Logo as histórias curtas dos livros infantis não eram suficientes e foi cedo quando a mãe passou a pegar livros da sua própria estante, a Estante dos Adultos (isto é, a estante que ficava na altura que apenas os adultos podiam acessar), para ler para ele antes de dormir. Nesse caso, fizeram um acordo de quantas páginas seriam lidas por noite e a mãe encerrava a leitura na página exata, mesmo que fosse no meio de uma frase, o que fazia com que o peito do menino disparasse de ansiedade pelo dia seguinte.

Sonhava com as histórias que ouvia. Sonhava com as palavras, com o som das palavras, com o ritmo das frases, com a voz da mãe. Não sonhava com o enredo da história: com a história em si, a linguagem propriamente dita. As palavras flutuavam em borrões no seu sonho e ele se concentrava para decifrar seus significados. Todo dia de manhã perguntava para mãe O que significa isso?, O que significa aquilo?, Por que o verme roeu a fria carne?

Todo dia de manhã a mãe respondia, no melhor de suas habilidades, as perguntas do filho, e se perguntava onde é que aquilo ia parar. Não sabia muito sobre filhos, porque ele era seu primeiro — e também seria o último — , então confiava ela também na promessa que lhe fizeram.

Parece que a vida é uma sequência de promessas emendadas.

Munido das respostas, foi construindo, em paralelo ao mundo real, seu próprio mundo. Ao aprender a ler, seu mundo ficou mais sólido e, ao mesmo tempo, muito mais complicado de entender. Para cada O que é isso?, O que é aquilo?, Por que a cachorra Baleia tem que morrer?, havia, além da resposta da mãe, um infinito de outras respostas possíveis e, também, impossíveis. O que parecia solução era um novo problema. Para deixar a mãe dormir, começou a ler suas próprias histórias. Agora sonhava com as letras, com as palavras bem formadas, com as frases, com os períodos, os pontos, as vírgulas, as interrogações. Achava lindo o formato da vírgula, uma curvinha que nos dá o tempo de tomar o ar antes da próxima frase. Achava ambíguo o sinal da interrogação, perfeito ao seu próprio sentido: ?

Lia a mesma página do mesmo livro dezenas de vezes repetidas. Cada palavra era uma multidão de outras palavras. Queria explorar uma por uma, chance por chance, opção por opção, sem deixar nada se perder. Queria, afinal, crescer e ser um adulto sabido, como pareciam ser todos os adultos, como parecia ser a sua mãe, que lia num ritmo confortável, sem nunca parecer vacilar nas palavras difíceis. Como parecia ser o seu pai, que, fosse um sinal gráfico, com certeza seria uma exclamação, feita como se fosse um retrato do homem: !

Queria estar preparado para a vida, entender tudo, encaixar-se no espaço que a ele haviam deixado reservado. Porém, a cada leitura da mesma página surgiam novas dúvidas e o que deveria diminuir — a inadequação — só fazia aumentar. Estava perdendo alguma coisa, estava fora do passo, dançava uma dança diferença dos demais.

O que lhe restava? Fazer como os outros faziam. Observava os colegas na sala de aula e fazia igual. Observava o pai de pernas cruzadas e fazia igual. Observava a mãe fechar os olhos antes de tomar o primeiro gole do café preto e fazia igual — com leite e nescau, só mais tarde com café preto. Observava o primo escutar música e batucar na própria perna e fazia igual. Observava a professora molhar os lábios com a língua antes de começar a falar e fazia igual. Observar e repetir. Observar e repetir. Observar e repetir. Estava certo que este era o caminho: observar e repetir, até não precisar mais observar. Havia outro jeito de viver?

Não parecia ser um dia extraordinariamente distinto de todos os outros, mas nunca parece ser, até que é: ele chegou da escola, desceu da perua, deu tchau para o motorista — como todas as crianças faziam — e entrou em casa. A mãe o esperava na porta e lhe deu um beijo na testa — como muitas outras mães faziam. O pai ergueu os olhos e lhe recebeu com um sorriso — como alguns outros pais faziam. Deixou a mochila no quarto, como a mãe havia dito para ele fazer, e voltou para a sala. O pai estava sentado a mesa, segurando uma caneta e encarando um bloco de notas. Ele se sentou no sofá e observou o pai. Sob a primeira folha do bloco de notas havia uma segunda folha, roxa, de textura distinta e brilhante. Continuou observando. De um papel maior o pai copiava os números para o bloco de notas. Terminou a primeira folha, que foi destacada do bloco. A primeira folha foi para um montinho, a folha roxa ficou na mão do pai e a folha sob a folha roxa foi para um segundo montinho, em separado. Depois, o pai colocou a folha roxa sob a folha que vinha a seguir no bloco de notas e começou a mesma operação. Observar e repetir.

Deve ter ficado olhando o pai por uns 20 minutos. Quando o pai reparou no menino, chamou o filho para perto: deixa eu te mostrar uma coisa. Tirou uma folha em branco do bloco de notas e colocou sobre a mesa. Sobre a folha em branco, posicionou a folha roxa. Pegou o jornal e na página de quadrinhos, pediu para o filho escolher o preferido. O menino encarou as opções. Tudo é vasto, tudo é possível — o mundo é impossível na sua vastidão. Indeciso, apontou para qualquer um. Esse?, o pai perguntou. Confirmou. O pai posicionou o quadrinho sobre o papel roxo e, com a caneta, começou a contornar o desenho. O menino observou. A caneta deslizava sobre os traços do jornal. O pai mordia o lábio inferior enquanto contornava. Fez apenas um personagem. Pronto?, perguntou para o menino. Ele não sabia o que responder. Sabia, na verdade: não estou pronto, nunca estive pronto, nunca estarei pronto. Mas essa não era uma resposta possível, porque nunca havia ouvido ninguém responder desse jeito. Observar e repetir. Balançou a cabeça afirmativamente. O pai tirou o papel que estava sob a folha roxa e lá estava a cópia do quadrinho que ele havia contornado.

Os olhos do menino se encheram de lágrima.

Calma, não é para tanto, brincou o pai.

Ele secou os olhos com as costas da mão e pegou o papel com o desenho. Como?, perguntou.

É papel carbono, explicou o pai. Com a pressão da caneta, transfere a tinta para o papel debaixo.

Como?, perguntou.

Não sei, filho, só sei que transfere.

Era uma resposta com a qual estava acostumado, mas não satisfeito.

Posso copiar qualquer coisa assim?

Se estiver no papel, pode.

O pai entregou o papel carbono nas mãos do filho e voltou a preencher a planilha de números.

Observar e repetir. E copiar. Repetiria o mundo até dele fazer parte.

Primeiro copiou todos os desenhos dos livros da escola. Depois, todos os desenhos de todos os quadrinhos de todos os jornais que achou em casa. Depois, as fotos de família — com cuidado, como a mãe pediu. Depois, o mapa mundi.

Tudo em que podia pôr as mãos e posicionar sobre o papel carbono, ele copiava. Repetia com esmero o contorno, deixava seu corpo completamente vulnerável para ser preenchido pela mesma vontade que impeliu o primeiro criador, que fez o objeto copiado, originalmente. Queria repetir não só o que ele transferia pelo carbono, mas a própria experiência. Queria observar, repetir e sentir. Queria tomar parte naquele evento, queria voltar no tempo e ser ele próprio o autor.

Queria ser parte viva do mundo.

Queria replicar todas as vidas que ele não viveu na sua própria vida.

Queria acessar algo que lhe escapava.

Queria costurar os fragmentos em um só, ele mesmo, inteiro.

Observava. Repetia. Copiava. Tudo o que era possível.

Um dia, pegou o livro que o assombrava há tempos — agora já não era mais uma criança, os pelos no seu rosto estavam nascendo, seu corpo mudava, a voz ia do agudo ao grave muito rapidamente. Desde que leu pela primeira vez teve pesadelos. Nonada, a palavra flutuava em seus sonhos, fazendo com que acordasse assustado.

Nonada?

O que é nonada?

A primeira palavra do livro já lhe enchia o peito de angústia, e assim foi até a última palavra — Travessia, cujo significado primeiro ele conhecia, mas naquele livro parecia dizer muito, muito mais coisa. Nada havia nesse mundo do que mais assustador e encantador do que aquele livro. Demorou um ano e três meses para acabar de ler pela primeira vez. Desde que acabou de ler pela primeira vez (tinha nove anos), releu umas dez. Continua relendo. Tem pesadelos. É um mundo a parte, como o seu próprio mundo, que ao mesmo tempo integra e é integrado pelo mundo real. Era como se a dança da vida cotidiana ganhasse um novo ritmo em que ele era embalado, sem chance de dizer nada ou impor qualquer coisa.

Nonada.

Agora resolveria a questão. Pediu à mãe que comprasse mais papel — Para quê, se tem tanto?, Vou precisar de mais, mãe. Ela comprou. Pediu ao pai por mais papel carbono. Ele entregou. Apontou os lápis — há muito sabia que para o carbono bastava a pressão sobre o papel, o que aprendeu com uma bronca da mãe ao perceber que sua foto de casamento estava toda contornada a caneta.

Sob a primeira página de Grande Sertão, pôs o papel carbono e, sob o carbono, a folha em branco.

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja.

Não como um Pierre Menard, mas como uma máquina de xérox que não quer apenas a reprodução do conteúdo, que a reprodução da criação do conteúdo. Ao longo dos próximos meses, todos os dias ao chegar em casa da escola era a isso que ele se dedicava: letra por letra, palavra por palavra, ponto por ponto, vírgula por vírgula, interrogação por interrogação, ele copiaria, sobre o papel carbono, o livro inteiro.

Observaria.

Repetiria.

Copiaria.

Entenderia.

O resultado não seria algo novo, mas algo velho: ele voltaria no tempo e seria outra pessoa, para se ver de fora e, então, saber quem era.

Letra por letra. Palavra por palavra. Ponto por ponto. Vírgula por vírgula. Interrogação por interrogação. Até a travessia.

Quando enfim acabou sua empreitada — e nesse meio tempo passou pelo ortopedista com a mão inchada, recebendo uma receita de anti-inflamatórios — , sabia que havia chegado em algum lugar. No entanto, como já lhe era comum, não fazia ideia de que lugar era aquele.

A primeira vez que viu alguém fazendo mímica foi em um festival de rua perto da sua casa. Um homem com o rosto pintado de branco, chapéu na cabeça e nariz de palhaço andava atrás de uma mulher, repetindo todos os seus passos e trejeitos. Quem assistia dava risada, a mulher dava risada, todos se divertiam. Ele encarava a cena com muita seriedade: não havia graça alguma, ali estava a vida.

Outros homens e mulheres também tinham os rostos pintados de branco, também usavam chapéus em suas cabeças e também vestiam narizes de palhaço, e todos repetiam as ações das outras pessoas que estavam por lá, estas sem fantasia. Ficou fascinado. Vencendo a dor física que a vergonha do desconhecido lhe causava, perguntou a um dos homens de rosto pintado — que, naquele momento, estava sem nariz de palhaço e sentado sobre um caixote tomando água, o que ele julgou como sinal de que estava num intervalo de descanso — o que era aquilo tudo. Mímica, o homem respondeu. Eu posso fazer? O que, mímica? Sim, isso que vocês fazem. Ué, é claro, disse o homem. Posso fazer agora?

De rosto pintado, com um chapéu emprestado e nariz de palhaço, começou a repetir a repetição. Os outros mímicos logo notaram que ele possuía um talento especial para a coisa toda. Sempre muito sério, compenetrado, repetia o que os outros faziam em um nível de detalhes quase assustador. Para além da repetição, parecia um espelho. No fim do ato, até os mímicos aplaudiram.

O pai fechou a cara quando ele disse que era aquilo que queria fazer. O desgosto durou até o primeiro espetáculo: nunca havia visto nada igual. A mãe se emocionou.

Observar. Repetir. Copiar. Entender.

Em qual momento viria o Pertencer?

Viemos a este mundo absolutamente despreparados. Não é uma surpresa que já cheguemos chorando, um sinal de Boa Saúde: é uma surpresa que não choremos por mais tempo, talvez o tempo todo. Viemos a este mundo absolutamente despreparados e vamos, pela arte da imitação, compreendendo seus meandros, seus trejeitos, praticando um contínuo jogo de tetris em que nos encaixamos e somos encaixados na dinâmica da vida cotidiana.

Com a pressão sobre o papel carbono, deixamos nossas próprias impressões a partir daquilo que experimentamos e vamos dando forma própria ao que não era nosso. Um jogo contínuo de apropriar-ser-apropriado. Em algum momento, deixamos de sentir que somos sobressalentes e nos sentimos parte do mundo. O medo cede ao costume e vivemos com alguma paz.

Mas nem sempre.

Ele observou. Ele repetiu. Ele copiou. Ele entendeu.

Mas ainda assim, mesmo com todo carbono que ele gastou, seu mundo e o mundo real ainda eram distintos. Tangenciavam-se, sem nunca se mesclar. Reproduziu para si a cópia do mundo que não era o próprio mundo. E neste mundo copiado, parecia estar sozinho.

Muito tempo já se passou desde quando chorou pela primeira vez. Muito tempo já se passou desde que ouvia a mãe contar histórias antes de dormir. Muito tempo já se passou desde que pintou o rosto de branco pela primeira vez.

Agora ele termina de lavar o rosto, porque é hora de visitar a mãe, cuja memória já falha e que está em uma clínica de cuidados paliativos desde que o pai subitamente morreu aos oitenta e nove anos. Enquanto se arrumava, encontrou a pilha de papéis com as letras de imprensa azuladas e manchadas.

Nonada.

Leu a primeira palavra e sentiu a mão latejar. Pegou a pilha de papéis e saiu para a clínica.

Entregou a xícara de café para a mãe e segurou a sua própria. Os dois fecharam os olhos antes do primeiro gole. Tirou a pilha de papéis da bolsa e a mãe perguntou o que era.

Uma história, mãe.

Vai ler para mim?

Sim, antes da senhora dormir.

Ela sorriu.

Ele começou a ler. O sol se pôs e logo apenas a lâmpada iluminava o quarto. Ela estava de olhos fechados quando ele leu Travessia.

Ainda de olhos fechados, a mãe disse: eu conheço essa história.

Ele respondeu: claro que conhece.

Ela perguntou: quem foi que escreveu?

E ele respondeu, enfim certo do exato significado de cada palavra: fui eu.

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