Quando as flores caem

Alexandre Brandão
impublicável.
5 min readApr 3, 2024

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Ela estava encostada no tronco do Ipê-Rosa da Praça Sete vendo as nuvens claras se afastando no céu azul enquanto fumava um Camel de uva. O lugar estava deserto na última quinta-feira abafada do verão. Nada além de alguns velhos rindo baixinho, tocando pombos e discutindo futuras ideias geniais para o país.

Mariana só queria espaço, silêncio e um pouco de ar puro, embora o fedor do diesel dos caminhões flutuasse até o meio da praça. Ela podia escutar os motores, as buzinas, o caos. Tudo muuuiiito distante, mas presente. Podia imaginar as avenidas ao redor da praça lotadas de carros e motos e carretas e motoristas putos xingando uns aos outros como se estivessem em um ringue de luta sem regras.

Mas também ouvia os pássaros. Pairavam acima de sua cabeça e repousavam em seus ninhos improvisados nos galhos do ipê. Eles piavam, alto e agudo. A natureza vibrante e colorida no meio da cidade cinza, fedida.

Soprou a fumaça para o céu. Bateu as cinzas na grama. Apagou o cigarro no tronco. Os ambientalistas não iam gostar nem um pouco disso. Mas ela não se importava. Parara de se importar há muito tempo, quando ainda tinha quinze anos e pintara o cabelo de verde e fizera a tatuagem de uma cobra enrolada na lateral esquerda de seu pescoço. Seus pais a encararam com aquela expressão. A expressão que todos os pais guardavam para os momentos em que preferiam ficar calados porque amavam seus filhos e no fundo, no fundo, não valia a pena discutir. Eles iam crescer e se arrepender por conta própria. Para que gastar saliva com algo que o tempo vai ensinar melhor do que eles?

Mariana sorriu. Botou os fones de ouvido e pulou várias músicas e só parou ao escutar Morrissey catando sobre a noite que abrira os olhos dele. O sonho acabou, mas o bebê é real.

E eu não estou feliz e não estou triste, ela pensou e cutucou a própria barriga com o indicador até deixar uma marca vermelha em sua pele branca.

Abriu a bolsa, pegou mais uma vez o teste de gravidez e comparou a cor no retângulo com as cores da caixa. Devia ser a décima vez que fazia isso. Nenhuma delas parecia real o bastante para que parasse.

Tudo parecia um sonho. Ela sentia que podia acordar a qualquer momento e encarar o teto branco do quarto de seu apartamento no centro, pegar a mochila, ir para o ponto de ônibus e descer em frente à faculdade. Ouviria três ou quatro aulas insuportáveis e desinteressantes. Comeria uma comida fria e sem gosto. Voltaria para o ponto de ônibus e desceria em frente ao prédio, mas não entraria nele. Não, primeiro passaria no Bar da Pati e tomaria quatro Brahmas de 300mL pelo preço de três e depois voltaria para o apartamento.

É isso, pensou. Preciso beber. Beber até esquecer que tudo é real. Beber até tudo virar um sonho de verdade. Beber até…

Até o quê? Até matar a coisinha dentro de sua barriga? Seria muito fácil, não?

Não, talvez não fosse tão fácil assim.

Ela abraçou o próprio ventre e encarou o céu outra vez. Sua mão procurou o maço de cigarros dentro da bolsa, mas ele estava vazio. Era o momento ideal para parar de fumar de vez. Mais um deles. O centésimo momento ideal para parar de fumar em sua vida e provavelmente não seria o último. Não, não seria. Porque o câncer em forma de tubo era saboroso demais para ser deixado para trás desse jeito.

Respirou fundo. Fechou os olhos. Sentiu uma lágrima escorrer pela bochecha. Não sabia o que fazer. O ipê não ajudava muito. Era só uma árvore e, pensando bem, os cantos dos pássaros estavam começando a irritá-la e um cigarro agora não seria nada…

Pare de fumar, pensou.

O maço já estava em suas mãos e não, não estava vazio. Ainda havia um punhado de tubinhos ali dentro. Um dos cigarros escapava para fora. Ela o içou com os lábios e o cuspiu na grama e usou os All-star pretos e surrados para esmagar o tubinho de câncer.

Mas por quê? Não seria melhor dar um fim rápido àquilo? Pegar logo um espeto de churrasco e enfiá-lo em seu corpo e sacudir e sacudir e sacudir até todas as suas entranhas tornarem-se um suco grosso e vermelho e…

Ela cobriu o rosto com as mãos e a bolsa e o maço de cigarros caíram na grama e os cigarros rolaram pela relva. Mariana gritou até seu pescoço arder e, embora som nenhum tivesse saído por sua garganta, quando afastou as mãos e o sol esquentou suas bochechas, ela se sentia um pouco melhor.

Não adiantava nada tentar escapar. A vida estava diante dela, atrás dela e dentro dela. A vida era uma verdade fria e inconveniente cujo coração já batia em sua barriga. A verdade fria e inconveniente cresceria como um bolo e ganharia bracinhos e perninhas e abriria seus olhinhos e choraria quando visse a luz exageradamente forte de um quarto de hospital.

Até lá, seria ela a dona do choro. Porque Mariana não ousava se enganar: as lágrimas viriam. Especialmente quando apoiasse sua cabeça completamente sóbria no travesseiro durante os próximos longos oito meses.

E o pai?, ela pensou. Ele merece saber?

Talvez…

Juntou tudo que caíra de sua bolsa, pisoteou os cigarros e se levantou. Encarou o Ipê-Rosa solitário no gramado da Praça Sete. Algumas flores despencavam dos galhos e anunciavam a chegada do outono. O vento ainda era fresco e em breve se tornaria frio. Até lá as flores cairiam quase todas e o gramado ficaria colorido de rosa por alguns dias, antes delas murcharem.

A árvore permaneceria de pé. Inabalável. Ainda que completamente nua. Gostaria de ser forte como ela, imponente como ela, segura como ela. Mas era apenas uma garota de vinte um anos assustada demais para se encarar no espelho. Assustada demais para pensar em como seria ainda mais assustador em alguns meses ou — pânico! pânico total! — em algumas semanas.

Um Camel rolou até a ponta de seus tênis. Parecia intocado. Não dava para ver nenhum amassado. Ela o pegou e enfiou na boca e acendeu e puxou a fumaça para dentro de seus pulmões. Sentiu o sabor de uva misturado com nicotina e tabaco e fechou os olhos. Soprou a fumaça e deixou o cigarro cair e o esmagou.

Para dar sorte, pensou.

Virou-se e afastou-se das árvores.

As folhas caem, mas a árvore permanece. Por anos e anos e anos. Bastava ser forte. Bastava pensar em…

Pensar em quê?

Ela não sabia. Talvez descobrisse. Talvez não.

Talvez…

Ela sorriu e uma lágrima escorreu por sua bochecha enquanto atravessava o gramado e saía da praça. Era hora de falar com seus pais.

Mariana sacudiria a própria árvore com força para ver quantas flores sobrariam no final. Não muitas. Apenas algumas. Elas teriam que ser o suficiente.

Talvez fossem.

Talvez não.

Talvez…

AB — 01/04/2024

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Alexandre Brandão
impublicável.

Às vezes um cigarro é só uma fumaça e uma história é só uma história