QUANDO O CÉU EXISTIA
Acordei após o sono dessa noite saudoso do sonho que tive, um sonho que pode ter sido também uma memória, porque tudo o que eu sonhei eu tenho a certeza de já ter vivido. Você se lembra de quando o céu ainda existia? Eu sonhei com os dias em que nós ficávamos com as costas sobre o chão, olhando para cima e identificando, muito seriamente, as figuras que se formavam nas nuvens:
os animais,
os aviões,
os navios,
os monstros,
nós mesmos.
Quis voltar a dormir para continuar o sonho, mas ao fechar os olhos a ilusão do passado existente já havia se desfeito. O céu não existe mais e eu não fui capaz de enganar a minha própria consciência. O concreto, por sua vez, tem formas muito previsíveis. Olhar para cima hoje em dia não é nada mais do que ver o cinza sobre o cinza sobre o cinza.
Tenho certeza de que você se lembra de quando o céu ainda existia. Eu me lembro, apesar de a lembrança, a cada dia em que continuamos vivos nesse mundo com teto, estar se esvanecendo, como aquelas nuvens no verão que iam ficando esgarçadas, como um algodão doce sendo desfeito pelas mãos da criança fascinada pelo açúcar. Eu me lembro também de quando cobriram o céu pela primeira vez e disseram: é por pouco tempo, só até resolvermos essa questão. Nós acreditamos, por que não acreditaríamos?
Um mundo sem céu não é um mundo. E, no fim das contas, o céu continuaria lá. Mas não continuou. Achávamos que os recém-nascidos estavam enganados ao não serem capazes de conceber a noção de permanência, ao terem a certeza de que as suas mães, ao saírem dos campos de visão limitados dos olhinhos quase virgens, saíam também desta existência, e aí choravam e choravam e choravam. Nós estávamos certos de que os recém-nascidos estavam enganados, e por isso nós não choramos, mas se soubéssemos o que estava por vir nós faríamos igual aqueles bebês: abriríamos o berreiro.
Fato é que o céu se foi quando nenhum olho testemunhava mais a sua magnitude. Quando a infinita cobertura de concreto foi removida, foi possível ouvir, ao redor de todo o mundo, o mesmo som abafado da palavra que se perde. Não havia nada, você se lembra? Eu me lembro mais desse nada do que do céu em si. Eu me lembro de olhar para cima e não entender o que eu estava vendo, porque eu não estava vendo, nem eu, nem ninguém. Como deixar de olhar. Como ver e não enxergar. Não havia céu: lá em cima, só uma vastidão do mais puro nada.
Cobrir o vazio foi a melhor solução, é claro, nós sabemos, o impacto mental de estarmos cercados pelo que os poetas norte-americanos chamaram de nothingness era poderoso demais. Com o aumento do número de surtos, a volta dessa manta protetora de concreto foi a melhor saída. Poderíamos ao menos fingir que do outro lado havia um céu. Poderíamos fazer de conta. Poderíamos outra vez acreditar na noção de permanência.
Espero sonhar mais vezes com o céu, um sonho em que eu me lembro, um sonho-memória. Você se lembra de quando a memória ainda existia?