Quem tem pressa come…?

Júlia Palhardi
impublicável.
3 min readMay 16, 2023

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Fiz uma cheesecake. A receita pedia cinco horas de geladeira. Já era noite, não queria esperar o dia seguinte. Mas lembrei do último pudim que fiz e: comi morno. Quem tem pressa come morno?

Não, caramba, não é assim a expressão. Como é que ela é mesmo? Não quis recorrer ao google. Queria desafiar minha memória e lembrar sozinha. Ou melhor seria perguntar para a minha mãe. Minha mãe é a rainha das frases feitas, tem todas na ponta da língua. Com certeza ela vai saber. Mas minha mãe não está em casa. Eu estava na casa dela. Ela logo chega.

Enquanto não chega, continuo a desafiar minha mente para lembrar: quem tem pressa come o que mesmo?

Não lembro, merda.

Em compensação, já logo inicio meu vício de metaforizar tudo.

Penso que tenho tido muita pressa na vida.

E, por ter pressa, tenho comido tudo meio morno. Meio esquisito. Tenho comido o que não gosto e o que me enjoa. Tenho comido ultraprocessados: sou impaciente demais para deixar chegar o sábado e ir à feira de orgânicos. Como até o que está fora da validade. Tenho comigo muitas coisas estragadas. Tenho, por não conseguir adiar, comido frutas tão verdes que amarram a boca. Aquilo que está maduro me parece mais próximo de apodrecer. Se bem que também experimentei um abacate passado e passei mal. Qual é mesmo o ponto ideal? Tenho comido a comida dos outros: a alface do vizinho é sempre mais verde. Tenho comido comida fria porque não tenho paciência de esperar o um minuto completo do microondas. Cancelo faltando dezessete segundos. Ou então como quente demais. Que eternidade imensa é essa de esperar o café esfriar? Tenho queimado muito a língua. Quem tem pressa come morno, frio ou quente, afinal? Tenho comido migalhas porque não consigo esperar a massa descansar e crescer, crescer. Tenho comido o pão que o diabo amassou. Ó Deus, tenho tido tanta afobação que comi até aquilo que jurei nunca mais comer. Tenho comido tanto, tanto, tanto que depois pareço uma grávida. Não deixo um grão de arroz sobrar no prato. Desperdício é pecado? E se mesmo assim sobrar, se eu estiver ao ponto de quase explodir de tanto comer, ainda assim mando o garçom embrulhar para a viagem. Quem sabe se na madrugada dá vontade? Ou requento no café da manhã: no dia seguinte é sempre mais gostoso. Tenho comido de tudo porque meu amigo disse que, se não comer, a terra come. Por estar ávida de tanta fome, comi logo três. Quatro. Cinco. Seis. Na mesma noite. E depois vomitei, vomitei. Continuei com fome. Não consigo, que inferno, não consigo deixar a torta para amanhã: tenho que me lambuzar agora. E lembro do pudim que comi morno. E faço cara de nojo. E meu estômago revira de ponta cabeça. E embrulha.

Ô mãe, cadê você? Quem tem pressa come como mesmo? Ou será que não come? Não come nunca? Me ensina a comer direito, mãe? Faz aviãozinho de cheesecake e me mostra como é que se faz para comer uma torta geladinha sem essa neurose toda?

Minha mãe abre a porta da sala com as mãos cheias de sacolas avermelhadas: acabara de voltar do açougue.

Mãe! Como é que é aquela expressão: quem tem pressa come…?

Quem tem pressa come cru, filha. Come cru.

Esse texto não possui compromisso algum com a realidade. Não, mãe, não tenho comido comida estragada. Nunca comi tão bem na vida. Só ando muito, muito gulosa. Obrigada a você que chegou até aqui. Se gostou, deixe suas palmas, faça um comentário e vamos ser amigos no Twitter ou Instagram.

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Júlia Palhardi
impublicável.

Fascinada pela arte de ouvir pessoas e transformar as sutilezas do cotidiano, em poesia. Jornalista, escritora, atriz.